Caótica e politicamente incorreta, comédia de Ricky Gervais na Netflix é dose de humor para finalizar o ano com pé direito Divulgação / Netflix

Caótica e politicamente incorreta, comédia de Ricky Gervais na Netflix é dose de humor para finalizar o ano com pé direito

O fim está próximo, e quem toca as trombetas do Apocalipse é Ricky Gervais. Não, na verdade o comediante britânico de 62 anos, ganhador de sete BAFTAs, o prêmio da Academia Britânica de Cinema, três Globos de Ouro, cinco National Comedy Awards e dois Emmys, criador de séries que se tornaram divisores de águas na indústria cultural, casos de “The Office” (2005-2013), idealizada por Greg Daniels e exibida pela NBC;   “Extras” (2005-2006), partilhada por BBC e HBO e “SuperNatureza” (2022), para a Netflix — todas superestimadas em algum grau —, pretende-se o arauto da boa nova, destruindo tudo quanto encontra pela frente, sem poder erigir nada para ser posto no lugar.

“Armageddon”, o novo show de escatologia de Gervais, chute o balde do politicamente correto, levando com ele preocupações mínimas com decoro, que substitui pela urgência em fazer graça com tudo, tudo mesmo, e substituindo-a pela boa e velha lenga-lenga sobre liberdade de expressão, opinião e associação, tripé basilar para a consolidação de qualquer democracia que se preze, usado, ora vejam!, para que endinheirados como Gervais desfrutem de mais liberdade que a patuleia. Sempre que um humorista — e mormente um humorista multimilionário — invoca tal argumento, o diabo do livre-pensamento e do absolutismo da democracia, da rebeldia sem causa e da insubordinação vazia, solta uma baforada jubilosa pelas ventas.

Gervais é, justiça se lhe faça, uma metralhadora. Em cerca de hora de espetáculo, o comediante conta mais de duas dezenas de piadas, com, por óbvio, as pontuais intervenções da plateia, bastante contida, aliás (eles são ingleses). Gervais começa mandando a plateia calar a droga (ele diz outra palavra) da boca depois de ser ovacionado, tudo mui britanicamente, para emendar considerações sobre em que medida a improvisação pauta seu trabalho, e daí vai ao poder do pensamento negativo.

Há um quê de caldeirão infernal na sala com gente para não se acabar mais, iluminada por canhões de luz vermelha, uma minudência decerto pensada pelo diretor John L. Spencer em mais uma parceria dos dois. Esse é o gancho de que precisa para encadear sem método tropos que aludem ao futuro cada vez mais caótico da inteligência artificial, e se quem acompanha sua verborragia se dá ao luxo de piscar, sente-se como Dédalo no labirinto, sem asas.

Em instantes, o anfitrião já começou a lançar farpas contra Deus e o mundo, tornando à suposta pedofilia de Michael Jackson (1958-2009), absolvido das catorze acusações pelo crime em 13 de junho de 2005 — e impossibilitado de processá-lo pela aleivosia —, a que amalgama num bolo fétido blagues sobre crianças em estado terminal, que ele diz ajudar, revertendo parte da bilheteria para instituições de caridade; idosos; gays; e Hollywood, que, segundo ele, ganha dinheiro expondo na tela as agruras desses estratos.

O psicólogo israelo-americano Dan Ariely cunhou a expressão “comportamento de manada” para definir o que acontece em situações como os shows de horrores ancorados por Gervais. Ninguém em pleno domínio de suas faculdades mentais atrever-se-ia a gargalhar de nada que o magano diz em assistindo a suas pantominas odientas do sofá de casa, sozinho. Num teatro de mil poltronas, todas ocupadas, entretanto, as risadas pululam, o que aumenta a sensação de desalento.

O que revolta em Ricky Gervais, mais do que a ignorância, mais que a nonchalance, mais que a covardia, é saber que indivíduos como ele são, de fato, porta-vozes dessa nova humanidade, insensível, cruel, abjeta, agente da mudança em nome da tirania de se dizer tudo. Voltaire (1694-1778) talvez o perdoasse, mas certamente Aristófanes (447 a.C.-385 a.C.), o pai da comédia, o jogaria aos lobos. Apesar de tudo, o grande problema de “Armageddon” mesmo é não ter graça.


Filme: Ricky Gervais: Armageddon
Direção: John L. Spencer
Ano: 2023
Gêneros: Documentário/Comédia
Nota: 5/10