Aprendendo a matar passarinho

Aprendendo a matar passarinho

Morava numa rua de terra. Chutava bola descalço em futebóis da vida. Ninguém ganhava. Ninguém perdia. Vivia-se. Sem glórias, mas, vivia-se. Arruinava a cabeça dos dedos. Mamãe se arrepiava com o vidro de mertiolate nas mãos. Perdia as unhas nas pisaduras dos mais meninos velhos. Mamãe ralhava. Fundia a pele com a poeira que se tornava uma parte fundamental do meu corpo. Chorava lama. Suava barro. Uma lembrança feita de tijolos. Berrava que nem cabrito. Trepava nos telhados que nem cabrito. Ah, se mamãe me visse… Havia poucas meninas na rua onde eu residia. E já sentia pelas pequenas grandes doses de uma gastura interessante, viciosa e cosquenta que me formigava o estômago. Aquela vontade velada de me aproximar, de pesquisar o aroma de lavanda nos cabelos delas, de caminhar de mãos dadas como se fosse gente crescida. Dois garotos dos mais graúdos tocavam o terror na região. Toda rua, todo bairro, toda cidade, toda nação tinham sempre os seus seres arteiros com predileção pelo caos e pela ruína. A dupla de encrenqueiros encantoava-nos, os pequenos. Furtavam-nos os pertences. Judiavam. Beliscavam-nos os testículos. Declaravam-se os donos do pedaço ao empunhar estilingues de matar calango e de arrebentar as lâmpadas da iluminação pública. Certo dia de natal, um desses moleques endiabrados apareceu na rua armado com uma espingarda de pressão que tinha ganhado de presente dos pais. Passaram, então, a fulminar os passarinhos nos lugares mais altos e longínquos, onde as pedras não alcançavam. A mortandade crescia como unha. Enfileiravam os defuntos das avezinhas sobre a calçada, produzindo um mórbido mostruário: pardal, rolinha, pomba do bando e canarinho da terra. Até canarinho da terra, coitadinho, que dó. Lufadas de vento cobriam de poeira os cadáveres emplumados. Disso eu me recordo. Foi desde essa época que aprendi a ser triste. Até o dia em que o asfalto chegou ao bairro, sinônimo de progresso e de cidadania. Lembro-me perfeitamente da meninada sentada sobre o muro, apreciando o vapor tóxico que fumegava, a modernosa camada de asfalto que a patrola esparramava como se untasse com manteiga uma forma de bolo. Eu tinha fome de novidades. De repente, a alegria parecia tomar conta. Não de forma definitiva, mas, significativa, com lampejos de esperança. Sempre cabia, contudo, um bocado mais de iniquidade. Tinha sempre alguém desagradável para atazanar com a alegria da gente. Certos meninos de gênio ruim, de maldade aprendida, que cresciam, mas, quase nunca se endireitavam. Culminando, então, em adultos cruéis que esperavam mandar no mundo, como se o mundo fosse a rua onde eles tinham crescido a ensinar como se matava um passarinho. Isso eu nunca aprendi.