Romance com Kate Winslet acaba de chegar à Netflix e é dose de ânimo que você precisa para começar a semana Divulgação / Imagem filmes

Romance com Kate Winslet acaba de chegar à Netflix e é dose de ânimo que você precisa para começar a semana

Myrtle Dunnage reaparece em Dungatar como um espectro. Tilly, como prefere ser chamada mesmo depois de cerca de trinta anos e um baú de péssimas lembranças, volta à cidade natal, o povoado fictício do interior da Austrália nascido da pena de Rosalie Ham, com o pretexto de assistir a mãe doente que não vê desde criança, mas o que quer realmente é resgatar um brio de dignidade, sem que tenha a menor importância o fato de ser agora uma costureira de renome, e, claro, dar vazão aos ardores primitivos a que alude o título deste filme cheio de personalidade, gracioso e absurdo. “A Vingança Está na Moda”, um faroeste estilizado, se fixa na tragédia muito íntima de uma mulher que disfarça suas fraturas com metros de pano, talhados com tamanha inspiração que até parece a mais legítima alta-costura francesa.

Jocelyn Moorhouse dá vida às aventuras de Tilly, a personagem-título de “A Modista”, o romance de Ham publicado em 2000, enxergando em sua anti-heroína uma urgência por afeto que se mistura com a defesa contra tudo e todos, sentimento que aflora de vez depois que decide se estabelecer na terra de que fora enxotada. Em seu roteiro, coassinado pelo marido, P.J. Hogan, famoso pela comédia romântica “O Casamento de Muriel” (1994), a diretora lança mão de um feminismo propositivo sem abdicar do charme, ou seja, corrobora o zeitgest e abre espaço para deambulações filosóficas sobre o poder terapêutico do amor. Uma combinação muito saborosa.

Contos sobre retaliações femininas têm virado uma sensação, quiçá uma tendência na novíssima produção cinematográfica, como se verifica em “Bela Vingança” (2020), o thriller com um quê de noir pelo qual Emerald Fennell levou para casa o Oscar de Melhor Roteiro Original, e “Mademoiselle Vingança” (2018), a joia neorrenascentista de Emmanuel Mouret baseada em “Jacques, o Fatalista, e Seu Amo” (1778), romance do iluminista francês Denis Diderot (1713-1784). Como se nota, não é nenhuma coincidência que a ideia de reparação passeie pela cabeça de profissionais do cinema em todo o planeta, e no que toca à “A Vingança Está na Moda”, Moorhouse e Hogan parecem decididos a também rivalizar com as esquisitices de Tim Burton e David Lynch.

Tilly nunca deixa claro o que fora fazer em Dungatar, e o público se vai permitindo iludir pela estampa agradabilíssima da moça, uma justiceira que sufoca como poucos seu lado obscuro, dotada de um faro sobrenatural para distinguir aliados e rivais nessa sua marcha rumo ao passado. Numa das primeiras cenas, a protagonista chega ao velho casebre da mãe, Molly, louca e doente, envergando um vestido de tons claros e escuros em perfeita harmonia, além de um chapéu de abas generosas, levemente inclinado para a frente, lembrando Chanel — embora o sargento Farrat, responsável por manter a ordem no lugarejo, ache que ela esteja num Dior legítimo.

Conforme se vai assistir pouco depois, o personagem de Hugo Weaving também não está exatamente confortávelsob a própria pele, gancho de que a diretora se vale com graça e sabedoria, elevando Weaving a muito mais que um coadjuvante excêntrico. A parceria dos dois rouba a cena em muitas ocasiões, a ponto de eclipsar a Mad Molly de Judy Davis, numa performance a um só tempo engraçada e patética.

Depois do Oscar de Melhor Atriz por Hanna Schmitz, a misteriosa colaboradora nazista de “O Leitor” (2008), de Stephen Daldry, Kate Winslet oferece ao público uma vamp um tanto menos sinistra, mas ainda assim macabra, abjeção suavizada em grande medida pelos figurinos de Margot Wilson. Tudo se encaminha para o desfecho previsível, com um banho de sangue próximo ao que se tem no longa de Fennell, não fosse, claro, o apelo irresistível da carne. Quanto mais Tilly se integra ao cotidiano daquela gente feia, mesquinha, repulsiva, mais sente a necessidade de alguma recompensa, materializada no interesse correspondido por Teddy McSwiney, o jovem fazendeiro de Liam Hemsworth. Catorze anos mais velha, ela deveria saber que o risco de não suportar tanta amargura e entregar-se ao amor sempre pairara no horizonte, mas quem se importa? Se vingança é mesmo a palavra de ordem nas bocas pintadas de batom mundo afora, o amor parece ainda despertar ilusões nas cabecinhas loiras e negras, lisas e encaracoladas das garotas de todas as idades. Ainda bem.


Filme: A Vingança Está na Moda
Direção: Jocelyn Moorhouse
Ano: 2015
Gêneros: Comédia/Faroeste
Nota: 9/10