Baseado em livro com mais de 18 milhões de cópias vendidas, obra-prima do cinema nacional está na Netflix Divulgação / Embrafilme

Baseado em livro com mais de 18 milhões de cópias vendidas, obra-prima do cinema nacional está na Netflix

Nos 1960, a violência no Brasil já dispunha de uma ampla rede de vasos comunicantes entre bandidos e as autoridades policiais. Desde então, espetáculos dantescos, como o de agentes da lei flagrados em conversas risonhas nas quais combinam a divisão do butim resultante da apreensão de um carregamento de drogas, ou mesmo facilitam a ação de mandachuvas do crime organizado visando, por evidente, à aposentadoria que a carreira no serviço público não pode oferecer, foram se tornando a regra, até que dessa raiz envenenada surgiram ramos que se alastraram sem controle, colocando em risco os acordos de cavalheiros da bandidagem com os seus pares de farda e distintivo, e foi necessário reconfigurar todo o esquema.

O nascimento dos esquadrões da morte acaba em segundo plano em “Lúcio Flávio: Passageiro da Agonia”, mas nem por isso pode-se dizer que também aqui Héctor Babenco (1946-2016) não componha um filme-denúncia, cuja vocação de registro sociológico não vibre a cada cena, feitas do amálgama de crueza e lubricidade com que se entende muito da natureza tão peculiar do Brasil.

Cada vez mais seduzido pela maldição verde-amarela do país do futuro que nunca deixa o que já passou, o marplatenseradicado no Brasil e naturalizado brasileiro aos 31 anos, em 1977, nunca intimidou-se pelos recados oblíquos da ditadura militar (1964-1985) para que pegasse mais leve nos ataques, embora este nem de perto seja seu trabalho mais raivoso. Grosso modo, “Lúcio Flávio” é um bosquejo para sua obra máxima, concebida ainda na vigência dos anos de chumbo.

A ascensão de Lúcio Flávio Vilar Lyrio(1944-1975) no submundo carioca fora copiosamente documentado pela crônica policial da época, a ponto do bandido ser encarado, como sói acontecer, à luz da celebridade, despertando a inveja dos outros criminosos e a raiva assassina das corporações. Essa escolha de Babenco e seus corroteiristas, José Louzeiro (1932-2017) e Jorge Durán, apenas reflete o espírito de um tempo que se foi entranhando no tal jeitinho brasileiro descrito pelo antropólogo Roberto Damatta, e o trio abusa de sequências em que a figura do personagem-título ganha contornos míticos, saindo de cada roubo a banco como se tivesse acabado de tomar um chope, não ser pela extensiva cobertura midiática que foi angariando.

Reginaldo Faria encarna à perfeição essa aura do marginal-herói, ideia desenvolvida meio despretensiosamente pelo artista plástico Hélio Oiticica (1937-1980), conferindo ao protagonista o charme do garoto branco, loiro, de olhos azuis e “bons dentes”; esse arquétipo do “bom ladrão” fica ainda mais flagrante em contraposição a 132, o investigador negro e corrupto de Milton Gonçalves (1933-2022).

Quiçá temendo alguma represália de patrulhas ideológicas as mais inesperadas — em nada comparáveis às de meio século mais tarde —, Babenco trata de recolher o elemento racial já no primeiro ato, quando Dondinho, o pai-de-santo interpretado por Grande Otelo (1915-1993) o espinafra. O longa vai e volta pelos altos e baixos da vida delinquente de Lúcio Flávio, levando ao desfecho quase surpreendente, que deixa o espectador à espera de alguma continuação. “Lúcio Flávio: Passageiro da Agonia” é o pai de

“Pixote, a Lei do Mais Fraco” (1980), em que Babenco escancara de vez o desalento por sua terra adotiva.


Filme: Lúcio Flávio: Passageiro da Agonia
Direção: Héctor Babenco
Ano: 1977
Gêneros: Ficção policial/Drama
Nota: 9/10