Somos a junção de todos os muitos defeitos e qualidades raras que desenvolvemos ao longo da vida, e chega um momento em que essa nossa bagagem torna-se fundamental quanto a definir de que forma agiremos frente às angústias que desafiam nosso espírito. O mundo vai se nos revelando um lugar especialmente hostil, onde passamos a ser forçados a medir cada palavra e estudar todo gesto, sob pena de arcar com consequências pesadas demais. Ninguém está a salvo da maldade invencível dos lobos travestidos de cordeiros que nos encurralam a todos, feras silenciosas e coléricas à espera do mínimo deslize para dar o bote e estraçalhar nosso corpo e nossa dignidade, fazendo com que nos sintamos muito mais máquinas que gente. Seres humanos pensamos dos jeitos mais diferentes acerca de assuntos os mais variados, e naturalmente cada qual tem suas cosmovisões e suas preferências. Sentimentos perdem-se na imensidão do universo que é todo homem e toda mulher, e quanto mais tentamos nos enquadrar aos padrões que não nos servem, mais longe ficamos de nossa problemática e tão rica condição de indivíduos.
A história está cheia de personagens que, por absurdo que pareça, passam ao largo da atenção — e mesmo do interesse — das gerações que vêm depois, por uma cornucópia de tristes razões. Hoje, por mais problemas que as sociedades do mundo tenham quanto a preservar o direito à opinião e à expressão livre, muito já se avançou nessa questão, ainda que o opróbrio dos injustiçados de outros tempos não se apague com decretos ou mesmo com a tomada de consciência de cidadãos da pós-modernidade. O matemático londrino Alan Mathison Turing (1912-1954) experimentou na carne tudo quanto pode existir de mais abjeto num regime tido por democrático, mas que, na calada da noite, dedicava-se a escarafunchar a vida íntima de cidadãos honrados, que cometiam o grande crime de não viver de acordo com o que se tinha por normal, mas segundo sua própria sensibilidade. A despeito de sua vultosa contribuição para o desenvolvimento da ciência da computação moderna, determinando padrões de comportamento das máquinas pensadas para auxiliar o homem num sem-fim de tarefas — o que foi dar nos conceitos de algoritmos e busca aproximada que se tem nos dias atuais, e em propósitos verdadeiramente nobres no seu tempo —, Turing viveu o inferno do linchamento moral por um motivo que hoje, felizmente, tornou-se ridículo. Biografia tomada pelo drama dessa vida sublimada pelo tormento, “O Jogo da Imitação” (2014) esmera-se por aclarar ao menos os aspectos mais centrais da trajetória de seu protagonista. Indo e voltando no tempo em flashbacks que ajudam o espectador a reter melhor a densa atmosfera de melancolia que sempre acompanhou Turing, o filme do norueguês Morten Tyldum oscila entre o tom de crítica social quanto a denunciar a condução trágica desse primeiro conflito, ao passo que também encontra ocasião para contextualizar a atuação do Turing cientista, fulcral para o advento do computador doméstico como o conhecemos.
O caudaloso de Graham Moore se debruça sobre boa parte das tantas questões envolvendo esse homem nada singular. Difícil pensar num nome melhor que o de Benedict Cumberbatch para encarnar o torvelinho de emoções que o personagem evoca, quase todas, em maior ou menor intensidade puxando para o lúgubre e para o mórbido, como denotam a fotografia de Óscar Faura e a trilha de Alexandre Desplat. Tyldum deslinda a personalidade excessivamente metódica, obsessiva de Turing, levando o público à conclusão quase obrigatória de que, de outro modo, jamais conseguiria chegar tão longe e escrever seu nome na história, alcançando a façanha que o enredo apresenta tão desabotoadamente quanto possível. O antirromance de Turing com a Joan Clarke de Keira Knightley, doce na medida, comove precisamente pelas semelhanças dessas duas almas que, mais cedo ou mais tarde, teriam se cruzado e poderiam ter sido ainda mais salvíficas uma a outra — mormente dela para ele — se as vidas fossem outras. Aliás, “vida” é uma palavra que cai como uma luva em se tratando de Alan Turing: seu invento, um decodificador de mensagens cifradas, abreviou a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) em pelo menos dois anos, poupando a vida de catorze milhões de pessoas. Nada mal para um misantropo que, no fundo, só queria ser amado.
Filme: O Jogo da Imitação
Direção: Morten Tyldum
Ano: 2014
Gênero: Drama/Biografia/Guerra/Thriller
Nota: 10