Esqueça tudo que você sabe sobre o amor: comédia romântica engraçadíssima na Netflix vai renovar sua fé e te fazer suspirar Divulgação/ 20th Century Fox

Esqueça tudo que você sabe sobre o amor: comédia romântica engraçadíssima na Netflix vai renovar sua fé e te fazer suspirar

Qualquer pessoa com mais de trinta anos já foi dominada pela impressão de que numa única vida é impossível se realizar todos os sonhos, independentemente de se dispor das condições necessárias para tanto. Mulheres sempre trabalharam — sobretudo as que não têm o respaldo financeiro de pais ou maridos —, e há pelo menos duas décadas nota-se, como “Qual seu Número?” registra, que entre priorizar relacionamentos amorosos, ainda que duradouros, ou uma carreira incipiente, mas com possibilidades concretas de evolução, elas optam, na esmagadora maioria dos casos, pela segunda alternativa sem hesitar — embora, por óbvio, arrependimentos jamais deixem de atormentar um espírito livre de verdade. O casamento rompe o século 21 confirmando sua fama de instituição falida mais invejada da história, e quando se alcança certa idade num bom emprego, com capital o bastante para saciar vários dos apetites que com que a fome da matéria nos instiga, saúde do corpo e uma alma que soube moldar-se ao absurdo do existir, mas um incômodo misterioso não para de bater à porta, acende-se um sinal amarelo que não se consegue ignorar. O jeito é engolir o orgulho, recolher os cacos de amor-próprio e aceitar, com muito prazer, rever certas direções tomadas em quadras pontuais do caminho, tudo para evitar ser uma solteirona desgostosa, que provavelmente, e bem no fundo, já pode estar habituada a não ser o centro das atenções nem para si própria.

Depois de encerrar mais um namoro (ou alguma coisa parecida) antes que o espectador tenha sido capaz de memorizar o nome do filme de Mark Mylod, Ally Darling se despede de Rick, o tipo meio dândi de Zachary Quinto, e procura a garrafa mais próxima, larga o suficiente para todas as suas mágoas. Bem em mais um daqueles papéis pré-moldados, em que melancolia e uma dose generosa de cinismo alternam-se num movimento finamente orquestrado, sem prejuízo de uma ou do outro e ganho do enredo — e da personagem mesma, claro —, Anna Faris empresta à protagonista quase todo o seu encanto e, vá lá, credibilidade, malgrado algumas inconsistências do roteiro de Gabrielle Allan e Jennifer Crittenden teimem em querer botar tudo a perder. Ally não parece do tipo que acredita em pesquisas quantitativas (e tanto menos nas que se arvoram a sacramentar a uniformidade de um campo tão diverso quanto os anseios femininos), mas assim mesmo fica escandalizada ao saber que, nos Estados Unidos, mulheres que já dormiram com mais de dez homens e meio (nada como a precisão das estatísticas) não se casam. Rick foi seu vigésimo parceiro, ou seja, do ponto de vista das ciências exatas, a sua é uma causa perdida, mas o que o texto de Allan e Crittenden apenas insinua, sem coragem de o dizer com todas as letras, é que a moça está incomodada de fato com a incerteza que o destino promoveu de algo etéreo, um tormento meramente paranoico, para a dura realidade: sua derrocada profissional e o consequente olho da rua.

Essa desonestidade fundamental da história é resolvida de modo desabridamente constrangedor com o plano de Ally, tão genial quanto uma comédia romântica de Hollywood autoriza, de ir à cata de seus incontáveis ex-namorados, um por um, até que um, enfim, dê-se por vencido e conceda-lhe um revival. Para tanto, convence o vizinho, Colin Shea, a investir-se da função de seu detetive particular, mas logo que se apresenta, todos sabemos muito bem para onde a trama há de se encaminhar. Músico de trabalhos diletantes, bermuda abaixo do joelho e tênis de lona, sem dinheiro até para bancar o sanduíche do encontro em que definem as “estratégias de ação”, fragilidades que compensa com um belo sorriso e os músculos para todos os gostos, Chris Evans compõe com Faris um casal à “A Gata e o Rato” (1985), o grande trunfo de Mylod, que manipula com habilidade as cordas desse anti-romance mais e mais incontrolável.

A participação de Anthony Mackie, como Tom Piper, o ex-namorado que se propõe a realizar o sonho farsesco de Ally, não sem se sentir a ovelha tocada ao matadouro, dá um pouco de dinamismo à narrativa, que não vai muito além do previsível. “Qual seu Número?” tem graça, mas a dupla Faris-Evans é melhor. Fique com eles.


Filme: Qual seu Número?
Direção: Mark Mylod
Ano: 2011
Gênero: Romance/Comédia
Nota: 7/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.