Felizmente, ainda há gente que se interessa por mais que beleza estética, mansões suntuosas, carros de luxo, status, e avalia com a devida franqueza o que alguém pode lhe oferecer num relacionamento amoroso. O problema para esse comportamento revolucionário é, como não poderia deixar de ser, a opinião alheia, a interferência daqueles que, em não tendo parâmetros sólidos pelos quais orientar a própria vida, julgam um escândalo a união de duas almas que existem em corpos muito distintos um do outro, e então se dá uma sequência de provações que esses dois guerreiros de Afrodite têm de arrostar.
“Ela É Demais Para Mim” vai no ponto nevrálgico dessa questão numa história leve, mas incisiva, em que os preconceitos e as noções tortas do que deveria significar amor desabam sobre um homem doce, inteligente, esforçado, que, ironia das ironias, nem crê tanto assim na magia cósmica que rege o destino dos homens em sua busca por provar do mais saboroso dos acepipes do banquete da existência, uma sorte que a maioria não tem. O protagonista do filme de Jim Field Smith parece estar convencido de que não merece certas regalias, mas o roteiro de Sean Anders e John Morris trata de fazer com que o público manifeste sua simpatia por esse tipo atrapalhado e torça por ele, mesmo quando uma reviravolta bizarra ameaça colocar tudo a perder.
Kirkmeteu na cabeça que merece nota cinco na absurda tabela que estima a cotação de seres humanos como se fossem automóveis luxuosos ou animais de raça. Muito dessa constrangedora insegurança vem, como se vai assistir, de seus amigos, sujeitos de bom coração, mas um tanto rasos, que também vão mudando à medida que o filme avança, num movimento que confere à trama a naturalidade que não há em produções congêneres que não deixa que ninguém os abandone. Esse homem comum, inspetor da TSA, o órgão responsável pela segurança dos sistemas de transporte nos Estados Unidos, criado pelo governo americano depois do 11 de Setembro, passa os dias supervisionando as atitudes de passageiros no aeroporto de Pittsburgh, na Pensilvânia, nordeste dos Estados Unidos, função que exerce como um sacerdócio, a única maneira de atenuar um pouco sua miséria existencial.
Smith trabalha bem esse núcleo, dando o justo espaço às conversas de Kirk com os outros marmanjos que estrelam o longa, sobretudo as elucubrações quase filosóficas que trava com Manchado, o solteirão nada convicto de T.J. Miller, que além de colega do protagonista, se defende como músico amador — há um ótimo número de Miller no segundo ato — e contagia todo mundo com sua ranzinzice meio tom acima. Jay Baruchel, por outro lado, empresta a Kirk a dose exata de idealismo, gentileza e autodepreciação, e quando uma bela mulher deixa o telefone na bancada de embarque ao passar pelo detector de metais, sente-se que seus dias de romances de uma noite só estão no fim. Mas não.
Grande parte da narrativa gira em torno do argumento da urgência de Kirk em desvencilhar-se de traumas de um passado que insiste em não passar, que ganham corpo sob a figura de Marnie, a ex-namorada vivida por Lindsay Sloane que, adivinhe, também está lotada no aeroporto — o grande calcanhar de Aquiles do enredo, sem dúvida. Quando nota que a dona do telefone está mesmo interessada por ele, irrompem as dificuldades naturais entre dois adultos que desejam vencer a estranheza de parte a parte e se conhecer melhor, acrescidas daquele probleminha quanto ao amor-próprio de Kirk.
Molly tem toda a paciência com o novo pretendente, e Alice Eve sustenta uma boa dobradinha com Baruchel, inclusive na difícil cena em que, na cama, depois que tiram a roupa, a moça faz questão de expor sua sindactilia e o encanto se quebra. Claro que “Ela É Demais Para Mim”, na Netflix, ao contrário do que sugere o título, acaba bem; no entanto, os ótimos diálogos sobre empatia, autorrespeito e, o principal, a necessidade de saber imperfeito e reconhecer as imperfeições alheias, caem feito uma sessão de psicanálise engraçada, objetiva e surpreendentemente eficaz.
Filme: Ela É Demais Para Mim
Direção: Jim Field Smith
Ano: 2010
Gêneros: Comédia/Romance
Nota: 9/10
