Filme que foi aplaudido de pé nos cinemas está a Netflix vai tocar fundo sua alma Divulgação / Sony Pictures Classics

Filme que foi aplaudido de pé nos cinemas está a Netflix vai tocar fundo sua alma

O século 20 foi uma era de contrastes. Em pouquíssimas ocasiões na história sucederam-se tantos episódios em que a beleza teve de se socorrer da força para que um terceiro sentimento, essencial à vida, pudesse, afinal, despontar. A pessoa rara, o corvo branco de que trata o filme de Ralph Fiennes é um dos exemplos de um homem que desde sempre soube muito bem aliar a pulsão de vida, o ímpeto de sobrepor-se às dificuldades, o desejo quase paranoico de encarniçar-se de seus sonhos, à vontade de superar qualquer embaraço — até a morte — em nome do que considerava digno de sua história, que como a de todo mundo, tem início muito antes que se comece a falar dela.

Na abertura de “O Corvo Branco”, o roteiro de David Hare mostra dois homens subindo apressados as escadas da sede da KGB, a polícia política da extinta União Soviética. Por uma ironia do destino, uma das figuras mais importantes na formação de Rudolf Nureyev (1938-1993), o personagem central da biografia da sul-africana Julie Kavanagh, publicada pela Penguin Books em 2007, junta-se a seu algoz — ou quem mais próximo chegou disso — a fim de discutir quais eram, de fato, os planos do bailarino, um dos símbolos da dança clássica na Rússia, que se reerguia de uma longa temporada sob o tacão do georgiano Josef Stalin (1878 – 1953) para mergulhar numa fase de comunismo marcha para o ocaso, tão lenta que atravessou quase toda a segunda metade do século. Enquanto isso, Nureyev se virava como podia, mas já galgava os degraus que o levariam ao topo. A fotografia de Mike Eley destaca essas duas etapas, a do Nureyev encarcerado no feudo mental comandado por Nikita Khrushchov (1894-1971), o secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, entre 1953 e 1964, e o momento em que o dançarino pousa no Aeroporto Le Bourget, em 12 de maio de 1961, e logo sente os ventos, da primavera parisiense e da mudança que perseguia desde criança, em Ufá, a capital da República do Bascortostão, a oeste dos montes Urais. Se antes Nureyev poderia mimetizar-se entre o cinza chumbo e o verde musgo, tal era a sua insignificância na terra em que nasceu, na França dos castelos de contos de fada e das óperas suntuosas, começam a cair-lhe por cima o vermelho-sangue do amor e o amarelo queimado da inveja.

Fiennes desdobra um flashback prolixo para aclarar pontos que julga fundamentais em sua história, reservando para o final a explicação sobre o que faziam reunidos na mesma sala Alexander Ivanovich Pushkin (1907-1970), a quem ele mesmo dá vida em passagens esparsas, mas vigorosas, e Konstantin Sergueiévitch, o interrogador do Comitê de Segurança do Estado, do excelente Nebojša Dugalić. Enquanto não tem vez o acerto de contas dos dois quanto ao que Nureyev atreveu-se a fazer — deixar de existir e viver, caminhando por suas próprias dores e glórias —, Fiennes dá carta branca ao bailarino ucraniano Oleg Ivenko, neófito no cinema, para colocar a nu, quase literalmente, sua potência física, seu ar curioso, seu talento ainda estabanado como ator, exatamente como Nureyev no princípio da carreira, a fim de arrastar consigo o espectador num pas de deux que se estende até o desfecho, quando outro vulto, um vulto de mulher, sacramenta seu destino. Se a interpretação de Ivenko parece um tanto canastrona por uma técnica ainda por tornar-se madura, sua porção curtida na tradição do melhor do balé aflora, conferindo a graça de que seu antimocinho carece; Nureyev parecia mesmo um espécime invulgar e selvagem que havia, finalmente, encontrado seu habitat. Vão ficando cada vez mais frequentes as cenas em que a natureza selvagem do artista salta à pele, não porque gostasse, mas porque devesse. O desentendimento com o professor Shelkhov, de Frano Lasić, porta de entrada para a relação com Pushkin, o catapulta à posição de estrela da Escola de Coreografia de Leningrado, seis anos antes de trocar sua pátria madrasta pela acolhedora Cidade Luz. E, por óbvio, seu brilho e sua habilidade cartesiana em fazer as melhores escolhas atraíram para si o apparatchik bolchevique numa marcação desumanamente incansável.

A sequência em que Sergueiévitch acossa Nureyev no Le Bourget, ao fim da turnê parisiense do Ballet Mariinski, reforça a presença de Clara Saint, a jovem socialite de Adèle Exarchopoulos, diluída no transcurso de 127 minutos de projeção. Num lance realmente cinematográfico como só mesmo a vida sabe escrever, a ajuda de Saint mantém Nureyev onde ele tinha de estar. Esse garoto intrépido, artista até o osso, permaneceu na França por 26 anos, quando voltou a uma Rússia menos obsoleta, mas ainda comunista, para o sepultamento da mãe, Farida. Seis anos depois, em 6 de janeiro 1993, aos 54 anos, Rudolf Nureyev despede-se da vida para dançar nos palcos da Eternidade. O balé já havia ficado pequeno demais para ele.


Filme: O Corvo Branco
Direção: Ralph Fiennes
Ano: 2018
Gêneros: Drama/Biografia
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.