Obrigatório para amantes da literatura, adaptação de best-seller lido por mais de 10 milhões de pessoas está na Netflix Divulgação / Miramax

Obrigatório para amantes da literatura, adaptação de best-seller lido por mais de 10 milhões de pessoas está na Netflix

Um ex-jornalista que interrompe a carreira depois de ficar rico decerto levanta suspeita, mas, espantosamente, Irwin M. Fletcher passa tranquilo pelos anos e coleciona mulheres e diversões igualmente fugazes, até que um assassinato misterioso ameaça botar tudo a perder. “Confesse, Fletch”, uma história em que cabem especulações criminais, gângsteres cujos tentáculos se estendem pelos quatro cantos do mundo, policiais indolentes e, claro, figuras saborosamente ambíguas como o personagem central, vibra na frequência de Alfred Hitchcock (1899-1980), Don Siegel (1912-1991), Terence Young (1915-1994) e mais um bom punhado de excelentes cineastas hábeis em despejar num mesmo caldeirão suspense, ação, anti-heróis medrosos e dados a casanovas e um humor bastante peculiar, servindo ao público uma trama tão original quanto sedutora em tempos nos quais o bom não é novo e o novo não é bom.

Baseado no livro de Gregory McDonald (1937-2008), publicado em 1974, Greg Mottola reacende o noir da franquia inaugurada por Michael Ritchie (1938-2001) em 1985 com “Assassinato por Encomenda”, fixando-se num protagonista muito mais carismático que Chevy Chase, responsável por levar o filme a atmosferas inexploradas até então — e, naturalmente, itens como a tecnologia, que permite enquadramentos mais ousados, e o próprio espírito do tempo colaboram para uma outra percepção das histórias de McDonald, não exatamente frenéticas, mas sempre atuais e provocadoras.

Quanto mais bizarro um filme, mais confiáveis têm de ser seus atores, os responsáveis por nos posicionar no lado certo da história, despertar em nós os sentimentos a que precisamos dar vazão, acender as lâmpadas mais opacas do pensamento e, enfim, girar a chave correspondente à mudança. Para tentar se entender a mente de um criminoso, é comum e mesmo recomendável procurar algum traço de humanidade em suas ações.

Há diversas linhas de estudos quanto a conjecturar o jeito mais eficaz de se chegar ao íntimo de pessoas que muitas vezes já perderam os possíveis elos cívicos com o mundo exterior, restando no fundo só uma personalidade doentia, sedenta de reparações que só elas admitem como justas. A mínima tentação quanto a se conferir algum verniz de glamour ao crime deve ser prontamente rechaçada. Contudo, é inegável que o sentimento amoroso traz o facínora para mais perto do homem íntegro, e muitas vezes até o regenera.

Jon Hamm dá a Fletch a justa medida de charme e ressalta a natureza eminentemente noir do roteiro de Mottola e Zev Borow, que brincam com essa nonchalance de seu antimocinho, um sujeito como que descorçoado de tudo, ainda que o disfarce sob belas roupas e às vezes trate de amaciar seu coração de pedra com hectolitros de bourbon. Nem o cadáver de mulher no chão do apartamento suntuoso que aluga é capaz de arruinar a fleuma desse 007 torto, e o caso com Angela de Grassi, a vamp igualmente sibilina de Lorenza Izzo, para ele conta muito menos que a delicada relação que mantém com uma mulher conhecida apenas pelo epíteto de A Condessa de Marcia Gay Harden, que abre a narrativa para um estimulante jogo de gato e rato acerca do sumiço de uma coleção de arte.

O respiro cômico de Roy Wood Jr. na pele de Morris Monroe, o sonolento inspetor do Departamento de Polícia de Boston, e Griz, a estagiária, de Ayden Mayeri, não permite que se fixe no longa o rótulo de história de tiras e bandidos, e mesmo a solução manjada de encerrar a trama “em algum lugar da América Central” não diminui a graça desse filme nada linear e cheio de nuanças.


Filme: Confesse, Fletch
Direção: Greg Mottola
Ano: 2022
Gêneros: Comédia/Crime
Nota: 9/10