Não há nada mais corriqueiro na vida do homem do que a própria banalidade, uma batalha perdida que insistimos em travar com os fantasmas menos óbvios que habitam nossas profundezas mais inacessíveis. Todos os dias pensamos — uns mais, outros menos, mas todos, sem exceção — sobre se é possível voltarmos ao que um dia fomos. Perdemos horas de sono, que costumam se estender para o expediente de trabalho, elucubrando, tecendo digressões as mais insanas acerca de como teria sido nossa jornada se houvéssemos tomado essa ou aquela decisão a respeito de tal ou qual assunto; uma energia poderosa é gasta com meditações vagabundas, que embora absorventes não resistem à chama da vida ardendo lá fora, sobre o que seríamos se não fôssemos o que nos tornamos e, como todo incômodo sempre pode maltratar um pouco mais, não tarda e nos deixamos sumir no labirinto de desvario que nos entontece, cheias das passagens que guardam os mistérios que nunca haveremos de revelar nem para nós mesmos. Ao termo de tanto autossacrifício, depois do sofrimento sem fim que devotamos em nos aplicar com gosto, chegamos ao fim de um caminho que não dá em parte em alguma, carregados de muito mais indagações quando do princípio da travessia, sem saber ao certo o que desejamos. E extenuados de todo.
Essa sensibilidade para entender que, ao passo que não faz sentido, a vida é uma sucessão de absurdos cada qual com seu próprio fundamento, prontos para espocar diante dos nossos olhos sem que possamos fazer nada, talvez seja uma das maiores conquistas que alguém pode fazer. O tempo avança sem transigir, indiferente aos nossos apelos, e um dia nos damos conta de que não temos mais controle sobre o que se passa conosco. Viver torna-se como uma brincadeira meio sem graça da qual não queremos tomar parte, ainda que estejamos no centro da roda. Flagramo-nos envolvidos em projetos com os quais não conseguimos nos identificar, que não nos dão prazer algum, mas assim mesmo levamos essas tolas empreitadas adiante, entre teimosos e envergonhados, persistindo nos erros que hão de nos condenar muito antes do que supomos.
Sofia Coppola é uma diretora tão bissexta quanto mordaz. Poucas vezes na história do cinema surge alguém com sua capacidade de, sem prejuízo do humor, expressar o pesar de que toda criatura dotada de um mínimo de razão e sentimento é vítima, a despeito da quadra da vida em que se encontre, não quanto ao desgoverno do mundo ou à impossibilidade das utopias, mas no que toca às escolhas que tem feito. “Encontros e Desencontros” (2003) junta um casal improvável, um anticasal, feito de um homem e uma mulher que se reconhecem, ao termo de um martírio silencioso e arrastado, que precisam se refazer, começar boa parte de sua jornada do zero antes que seja tarde demais. Filha de um dos grandes mestres nesse ofício, a diretora usa de enquadramentos milimetricamente calculados a fim de dar ao público a visão mais próxima do que sentem seus personagens, do que lhes vai pela cabeça, tentando entender sua gênese e seus apocalipses, como também fez o pai, Francis Ford Coppola.
A sequência que introduz o primeiro elemento dessa relação tão peculiar é bastante simbólica. Bob Harris, o ator de meia-idade vivido por Bill Murray, está simplesmente embasbacado com o que pode apreciar de dentro de um táxi da Tóquio que pulsa do lado de fora. Os outdoors gigantescos bruxuleando em neon feérico logo perdem o encanto frente a um lugar que se revela hostil, malgrado o temperamento pacífico da gente que cruza o seu caminho. Como o próprio título original sugere, a língua é um problema real, para Bob ou qualquer outro forasteiro do Ocidente que chegue para faturar dois milhões de dólares com uma campanha publicitária de uísque ou para limpar privadas. Murray confere a seu personagem essa aura de completo distanciamento, que principia no que se refere a si mesmo, e se espraia para todas os aspectos de sua vida. Há um problema de localização geográfica, mas há, antes de mais nada, um desajuste de si para si mesmo, uma inadequação com o que veio a ser. Não por acaso — mas com a ajuda parcialíssima do destino — conhece Charlotte, a moça sem nenhuma identidade que pertença exclusivamente a si mesma, que só existe em função de um marido que a abandona num quarto de hotel e passa dias a fio acompanhando uma banda de rock como fotógrafo. A doçura meio amarga de Scarlett Johansson é precisa, e sua dobradinha com Murray, mesmo que esse pseudorromance nunca se consuma — eles se beijam brevemente na sequência de encerramento, e só —, define um dos grandes momentos do cinema contemporâneo. A tradução aqui foi feliz: Bob e Charlotte são almas gêmeas que, passam uma pela outra como um cometa, e nunca mais voltam a dividir o mesmo céu.
Filme: Encontros e Desencontros
Direção: Sofia Coppola
Ano: 2003
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 9/10