Um dos filmes de suspense mais absurdos e perturbadores da história do cinema chegou à Netflix Divulgação / DreamWorks

Um dos filmes de suspense mais absurdos e perturbadores da história do cinema chegou à Netflix

Diretores verdadeiramente talentosos sabem muito bem fazer limonadas docinhas de frutos azedos em demasia, ácidos até, não sem um esforço muitas vezes inglório, quase sobre-humano, cujas implicações só ele mesmo conhece. Suspenses talvez sejam as histórias mais marcadamente cheias de altos e baixos, pelos quais, por óbvio, não se espera — ou, pelo menos, não se deveria esperar. É, para dizer o mínimo, sutil, a diferença entre uma história protocolar, simplória, ordinária, e o legítimo clássico, que o passar dos anos só ajuda a cristalizar como um instante de brilho raro de um diretor habilidoso, tomado pela inspiração, e Wes Craven (1939-2015) poderia muito bem acionar o piloto automático e deixar que “Voo Noturno” se conduzisse por si só, dando onde desse, apresentando resultados mais ou menos previsíveis malgrado as turbulências de costume, que demandariam alguma perícia extra quando da aterrissagem. Diante da iminência da catástrofe sem volta, ao piloto só restaria ejetar o assento e salvar sua pele, largando à própria sorte a tripulação e os milhões de passageiros, que findariam a aventura vivos, sem dúvida, mas bastante frustrados.

Muito seguro de seu talento, Craven, um dos maiores expoentes do terror, ratifica a grandeza de seu ofício, valendo-se de argumentos aparentemente banais para, com muito jeito, transformar pedras sem valor em brilhantes finos, impossíveis de se ignorar. Aqui, o diretor, eternizado como o gênio por trás dos filmes da série “Pânico” e “A Hora do Pesadelo”, destoa um pouco das produções que o fizeram célebre, cultuado e milionário, mas só um pouco. O roteiro, de Carl Ellsworth e Dan Foos, tem muito do nonsense e dos jumpscares, os sustos que levam o espectador a saltar da cadeira, é precisamente por aí que Craven navega, galhardamente. Quem espera os banhos de sangue que caem tão bem em longas meio artesanais a exemplo de “Verão do Medo” (1978) ou no ainda mais explícito “Convite Para o Inferno” (1984), se decepciona, sendo logo obrigado a substituir o desgosto pela (grata) surpresa. Uma manobra arriscada, porém certeira.

Grande parte dos tantos méritos de “Voo Noturno” cabe à performance cirúrgica de Rachel McAdams, que ao longo da carreira foi desenvolvendo um dom todo especial quanto a escolher com larga margem de acerto a que ângulos de um personagem angustiado deve dedicar-se com mais atenção e o que pode (e, muitas vezes, deve) ser relegado a segundo plano. McAdams lá havia procedido assim no ano anterior em “Diário de Uma Paixão” (2004), dirigido por Nick Cassavetes, e continuou em “Meia-Noite em Paris” (2011), de Woody Allen. Em “Voo Noturno”, Lisa Reisert, a mocinha da vez, passa cerca de dois terços da hora e meia de duração do longa a um palmo de distância de Jackson Rippner, o psicopata vivido por Cillian Murphy driblando a tentação de repelir clichês quase inexequíveis, tendo de lidar com a grande responsabilidade de administrar emoções as mais básicas de uma pessoa — ódio, ira, desprezo, repugnância, amor reprimido —, afloradas mormente em ocasiões de tensão máxima como a que enfrenta, a fim de garantir que o pai, Joe, de Brian Cox, não seja estraçalhado por um sujeito que o tem sob a mira de um fuzil do outro lado da rua da casa em que moram sabe Deus por quê. Lisa confia em seus sentimentos, em seus instintos; prefere crer que Joe seja o homem amoroso com quem mora desde que seus pais se divorciaram, embora se depreenda que nesse angu haja caroços difíceis de engolir. No meio da brincadeira, toma mais uma traulitada. Está em curso um plano para executar Charles Keefe, o vice-secretário de Segurança Interna dos Estados Unidos, participação afetiva de Jack Scalia, de passagem por Miami. Keefe vai se hospedar no hotel em que a personagem de McAdams é a chefe dos recepcionistas e coube à pobre Lisa autorizar a mudança de quarto do figurão, para que o serviço, também comandado pelo antagonista de Murphy, se torne à prova de falhas.

A propósito de lapsos, “Voo Noturno”, por óbvio, não é perfeito. Para além do mistério a adejar sobre a figura do pai — que decerto tem algum envolvimento com o atentado que se quer perpetrar contra o alto funcionário do governo, nunca esclarecido —, resta patente um amadorismo inverossímil na figura de Rippner, um terrorista muito pouco talhado para a missão que lhe confiam. A despeito da liberdade criativa do texto de Ellsworth e Foos, o desfecho, marcado por uma solução deus ex machina, de uma inconsistência pueril, reforça as falsas soluções que só fazem desembocar em mais enroscos, privilegiando justamente as variáveis que, por pouco, não botam tudo a perder. As sequências no avião são muito bem filmadas e os enquadramentos milimétricos pelos quais Craven opta sustam qualquer inferência de que aquilo é só um corredor de plástico e borracha envolto por toneladas de alumínio. O melhor do pior de “Voo Noturno” é realmente a força do estranho casal formado por Rachel McAdams e Cillian Murphy, que fortalecem a aura de segredos de polichinelo deste trabalho de Wes Craven. Esses detalhezinhos mínimos, que deporiam contra o filme, terminam superados graças ao modo irretocável como o diretor encaminha sua história para o final, feliz, por paradoxal que soe.


Filme: Voo Noturno
Direção: Wes Craven
Ano: 2005
Gêneros: Thriller/Mistério
Nota: 8/10