Filme brutal, com Liam Neeson, está na Netflix e não te deixará desviar o olhar Divulgação / Metropolitan FilmExport

Filme brutal, com Liam Neeson, está na Netflix e não te deixará desviar o olhar

À deriva entre a razão, salvífica, mas igualmente dotada de seu talento para a ruína, e o desespero, imanente à condição humana, absorvendo-nos para o centro das grandes, das irreversíveis misérias que se cultivam por si mesmas em nossa alma e se alastram — com a nossa ajuda inconfessa —, o homem se perde e se encontra e se perde mil outras vezes, sendo o lobo de outros inúmeros homens, mas sendo ainda lobo muito feroz para si próprio. Estamos condenados a cometer os mesmos erros pelos séculos dos séculos, até que nos arrebatem os anjos ou socorram-nos os bárbaros, trazendo algum falso desenlace com que teremos o maior prazer de nos iludir. O homem passa a vida em pânico, abafando a vontade de rebelar-se contra toda a insana fantasia que o cerca, temendo a postura que assume diante de dificuldades que lhe atravancam o prosaico dia a dia, por mais que pense e repense suas atitudes e compare seus gestos a suas intenções, justamente porque sabe que cedo ou tarde (e quase sempre é bem cedo, muito antes do que se gostaria) o destino há de lhe mandar a conta e ele há de ser obrigado a se explicar sobre tudo quanto fez — e tanto mais sobre o que deixou de fazer. Acossado por suas escolhas, o gênero humano avança no tempo esquivando-se o quanto pode de seu invencível medo do futuro, que não raro degenera na paranoia fundada numa disputa de elaborada parvulez entre o bem e o mal, conjuntura que o existir lhe apresenta sob a forma de um ir e vir sem medida de sensações que beiram o absurdo.

O amor é o comportamento mais racional que alguém pode assumir. Ninguém ama sozinho, por óbvio, porém mesmo quando redunda no fracasso mais humilhante, o mais humano dos sentimentos desvela lados surpreendentes da vida de alguém, a começar pelo progresso cognitivo. Para se amar e se deixar ser amado, é preciso o mínimo de discernimento, de agilidade de raciocínio, de desembaraço frente às circunstâncias verdadeiramente perturbadoras que definem em que grau duas pessoas estão de fato comprometidas uma com a outra, sequência de pequenos métodos que falam diretamente à certo ânimo para a honestidade inabalável. Envolver-se com alguém significa estar disposto a, recorrentemente, confessar seus defeitos até que eles, afinal, não resistam e comecem a ceder. Como por encanto ou por milagre, sem ser nem um nem outro.

Liam Neeson parece ter sido feito para dar vida a esses tipos meticulosamente situados entre a vilania e as qualidades que de fato importam num homem. Mark Williams apreende esse espírito de seu astro e as vai tirando dele a pouco e pouco, garantindo o suspense de um enredo à primeira vista utopista demais, quiçá até farsesco. “Legado Explosivo”, inevitavelmente, repisa lances que remetem a um talento que Neeson vem deixando aflorar no último estágio de uma carreira de sucesso — a exemplo do que se assiste no longa que abre a franquia “Busca Implacável” (2008), dirigido por Pierre Morel e “A Perseguição” (2011), de Joe Carnahan, ou “Sem Escalas” (2014), de Jaume Collet-Serra —, sobrando espaço para que também venha à tona a atuação marcadamente dramática que o consagrou em “A Lista de Schindler” (1993), levado à tela por Steven Spielberg.

Não há mistério no roteiro de Williams e Steve Allrich, exceto na forma como o diretor e seu parceiro trabalham a redenção de Tom Dolan, um dos ladrões de bancos mais persuasivos da história do cinema — durante a exposição do conflito central, numa cena memorável com a Annie Wilkins de Kate Walsh (uma quase homônima perfeita da psicopata de Kathy Bates em “Louca Obsessão” [1990], de Rob Reiner), qualquer um se compadece dele e, claro, Williams aproveita o flanco aberto para inserir mais um sem fim de sequências em que Neeson nos arrasta para o lado de seu protagonista, sem margem para recuo. Na esteira do processo, sofistica temas como a ubíqua corrupção policial e a seu desejo de amar e ser amado — bastante razoável, mas nascido de uma determinação que só quem já foi tomado de uma paixão genuína têm.


Filme: Legado Explosivo
Direção: Mark Williams
Ano: 2020
Gêneros: Thriller/Drama/Ação
Nota: 8/10