Implacavelmente arrepiante e de tirar o fôlego, filme na Netflix te levará a lugares que você não gostaria de ir Divulgação / Paramount Pictures

Implacavelmente arrepiante e de tirar o fôlego, filme na Netflix te levará a lugares que você não gostaria de ir

A alma de cada homem é como um rio, em que correm mistérios de diferentes gradações. Os mais inofensivos, que remetem a segredos que todos ao seu redor já conhecem, se agrupam num bloco maciço e coeso, e flutuam na superfície, escondendo os segredos realmente dignos da curiosidade, da admiração e do escândalo das outras pessoas, que, naturalmente têm seus próprios monstros e tesouros a manter a salvo do apetite alheio. Vive bem no fundo de cada um de nós uma criatura feita a nossa imagem e semelhança, que quase não conhecemos e contra a qual podemos muito pouco, desafiando-nos com suas provocações, lembrando-nos de que não somos assim tão perfeitos quanto imaginamos, e que se levarmos adiante essa intenção de passar por cima de nossa essência torturada e vendermos a ideia sabidamente enganosa da excelência em tudo, ela emerge e toma o controle, espalhando sem clemência dor e sofrimento por todo lado, sendo o nosso quinhão o primeiro do montante. Há muita coisa em nós mesmos com que não sabemos lidar e que desencadeiam uma tempestade de sentimentos controversos e destrutivos que inunda nossa vida.

Por mais poderoso que seja o bem — e ele o é —; ainda que os sentimentos mais nobres habitem o mais recôndito do espírito do homem — e eles o habitam —; e em que pese ser muito mais fácil ser praticante ferrenho da bondade anônima do que entusiasta colérico da vileza anunciada — e é mesmo, a porção de trevas é sempre muito mais imperiosa que a luz que porventura resista na alma de cada um. Estamos condenados a empreender essa guerra contra nossa própria natureza, ansiando por descobrir um mecanismo qualquer que nos permita seguir e nunca esmorecer diante da força descomunal da abjeção e da loucura, sempre a postos para arruinar o que podemos ter de mais precioso. Martin Scorsese fala como poucos sobre as qualidades menos honrosas do gênero humano, tanto mais se envoltas nas grossas brumas que ocultam o que parece óbvio. Tomando por base o romance homônimo de Dennis Lehane, publicado em 2003, em “Ilha do Medo” (2010), o diretor mistura drama e suspense num filme dos mais arrebatadores que o cinema já produziu, surpreendente por seu enredo e cativante pela estética que o coroa.

Esse lugar sombrio a que o título alude é o apelido pouco elogioso das ilhas Boston Harbor, um pequeno arquipélago rochoso, cheio de colinas íngremes e que remetem o espectador diretamente à ideia de isolamento, por evidente, mas também de punição eterna, como se a qualquer instante fôssemos nos deparar com a encarnação de um Sísifo hodierno, empurrando uma gigante pedra até o cume só para ter de vê-la rolar despenhadeiro abaixo outra vez, e outra, e outra mais, até que os deuses a quem enganou o perdoem. Essa aura de danação e sacrifício sem trégua fica patente logo na abertura, quando o roteiro de Laeta Kalogridis aponta um prisioneiro sereno, mas visivelmente desalentado passando o rastelo por um gramado assombrosamente verde, talvez a única imagem que evoque alguma graça ao longo de 138 minutos, realçada pela apurada fotografia de Robert Richardson, um dos muitos pontos altos do longa. Por ele atravessam o delegado Edward “Teddy” Daniels, vivido por Leonardo DiCaprio, e seu parceiro, Chuck Aulen, de Mark Ruffalo, rumo a um dos alojamentos das três alas do gigantesco complexo de celas, ciceroneados pelo doutor John Cawley de Ben Kingsley, sempre especialmente cativante em papéis como esse.

A lembrança do término recente da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), apenas nove anos antes, ainda faz reviverem em Daniels os traumas da frente de batalha e o público começa a se questionar se ele é mesmo o homem certo para a missão de que o incumbiram. Em 1954, Rachel Solando, a assassina dos próprios filhos interpretada por Emily Mortimer, que as evidências levam a crer que tenha fugido com a ajuda de outros prisioneiros e dos guardas, transporta o personagem de DiCaprio de volta a um evento macabro de sua própria história, momentos em que sua performance, já notável, torna-se mesmo magnética, cabendo grande parte do mérito à parceria com Michelle Williams como Dolores, a esposa com quem já não vive há algum tempo.

Scorsese mantém a narrativa pairando sob um pântano de incertezas, até que a entrada em cena de Patricia Clarkson colabora para que se desvendem boa parte dos enigmas de “Ilha do Medo”. A outra se dissolve com um lance inesperado da trama principal, quando o personagem de Kingsley apresenta uma lousa com nomes expostos ao longo do filme, compondo os anagramas que levam a audiência a cravar a conclusão inescapável sobre Daniels, Aulen, Rachel e Dolores, personagens de um delírio que se fundiu com a realidade de modo quase indelével, e com a verossimilhança mais errônea.


Filme: Ilha do Medo
Direção: Martin Scorsese
Ano: 2010
Gêneros: Thriller/Mistério/Drama
Nota: 9/10