Filme com Chris Hemsworth é um dos melhores suspenses da história da Netflix (e você provavelmente não assistiu) Divulgação / Netflix

Filme com Chris Hemsworth é um dos melhores suspenses da história da Netflix (e você provavelmente não assistiu)

Distopias como “Spiderhead” têm um caráter quase pedagógico. Por trás dessas histórias delirantes, inverossímeis, farsescas — e não raro patéticas — é que se escondem as verdades imperscrutáveis que muitos ignoram, aquelas com as quais vamos sendo obrigados a nos defrontar em situações mais e mais genéricas. Derivando sobre um assunto paralelo — as belas e perigosas emoções que orientam a jornada de nós todos —, o longa de Joseph Kosinski, diretor do aclamado “Top Gun: Maverick” (2022), se fixa na vontade destrutiva e autodestrutiva do homem quanto a transformar os ambientes em que se insere, o meio de onde surge, sua própria biologia e sua forma de pensar e refletir o mundo, como dissera Schopenhauer dois séculos atrás, só o que consegue é deitar tudo a perder, justamente por sua incapacidade essencial de fazer a escolha certa.

Em “Escape From Spiderhead” (“fuga de Spiderhead”, em tradução literal, sem edição em português), conto do americano George Saunders publicado em 2010, detentos aquiescem em se tornar cobaias para a elaboração de um novo medicamento, voltado a suprir a falta de emoção na vida de pessoas sem mais nada que as possa lembrar que viver é, também, sentir. Kosinski verte em imagens plenas de alta voltagem e algum humor a seiva fatalista do texto de Saunders, tratando de destacar o propósito oculto (mas nem tanto) de uma organização de caráter à primeira vista salvífico quanto a, num futuro próximo, domar a conduta dos prisioneiros mais inclinados à discórdia e às confrontações e manter seus ímpetos sob implacável vigilância. Aludindo a “1984” (1949), a profética obra-prima de George Orwell (1903-1950), os personagens estão sempre na mira rigorosa de câmeras, que não perdoam nada e flagram tudo, em especial quando se submetem, voluntariamente, às experimentações de Steve Abnesti, o milionário que patrocina toda a loucura e a comanda ele mesmo, com mãos de ferro. 

Chris Hemsworth está à vontade na pele desse antagonista estranho e diabolicamente charmoso, num esforço meio desesperado de outra vez merecer papéis dramáticos e, afinal, elevar sua carreira a um pavimento superior — como quase fizera cerca de uma década antes em “Rush – No Limite da Emoção” (2013). A exemplo do que se viu no filme de Ron Howard, Hemsworth consegue mesmo empanar o ótimo trabalho dos coadjuvantes e, esticando-se a corda, transcende o próprio enredo, adaptação rendosa da pena de Saunders, infilmável por natureza, mas transformada num colosso cinematográfico graças à roteirização de Rhett Reese e Paul Wernick.

Obedecendo a uma sequência de 25 testes, prosaicamente organizados numa cartela de bingo — aqui se faz necessária uma dose generosa de licença poética do respeitável e indulgente público —, falta a Abnesti experimentar apenas a substância denominada N40, a que encarna a possibilidade de comercialização de uma droga que levaria as pessoas a conhecer os doces riscos do amor. A pesquisa, que conta com a indispensável participação de Jeff, vivido por Miles Teller, avança sem maiores obstáculos, até que Heather, a cobaia interpretada por Tess Haubrich, resiste mais do que se poderia esperar. Essa última reviravolta dispara o gatilho que estava faltando para que o personagem de Teller desse sua permanência na equipe por encerrada; no vácuo desse movimento, a aproximação de Lizzy, de Jurnee Smollett, sinaliza para uma relação visceral e espontânea, sem a necessidade de quaisquer artifícios.

Kosinski é um dos realizadores de carreira mais auspiciosa da sua geração, e “Spiderhead”, complexo e galhofeiro, só valida ainda mais tal juízo. Juntando a direção de atores ao manejo de efeitos visuais que abusam do melhor da tecnologia, o filme é, no mínimo, perturbador. Uma sequência viria a calhar.


Filme: Spiderhead
Direção: Joseph Kosinski
Ano: 2022
Gêneros: Ação/Ficção científica/Mistério
Nota: 9/10