A obra-prima escondida na Netflix que vale cada milésimo de segundo do seu tempo David Lee / Netflix

A obra-prima escondida na Netflix que vale cada milésimo de segundo do seu tempo

Guillermo Del Toro não dirige nenhuma das oito curtas que integram “Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro”, mas é impossível dissociar sua imagem rotunda e elegante das histórias de terror fantástico que levam a audiência por uma viagem metafísica, delirante e cheia de revelações ao universo de tipos exóticos, repulsivos e miseráveis que foram se tornando a marca registrada de uma carreira que não admite obviedades. Para não dizerem que Del Toro parece ele mesmo um fantasma diante de sua obra, o diretor abre cada um dos filmes com um resumo breve do que se vai assistir, e em todos os casos, o que se tem é a inconteste superação do que o mestre enuncia, frisando o nome de cada colega antes que jogar-nos numa noite de breu denso e profundo, que sol nenhum dissipa.

“Gabinete de Curiosidades” mostra situações aparentemente banais que não tardam a degringolar em pânico e caos, protagonizadas por monstros improváveis e vilões empenhados em atropelar toda noção de moral, outra das características mais notórias em seus trabalhos. Em quase quarenta anos de carreira, o mexicano escalou o olimpo dos grandes realizadores de Hollywood com garbo, sem menosprezar a concorrência, mas muito seguro de seu talento e do que queria dizer. Hoje, quando se fala em Del Toro, pensa-se incontinente em tramas plenas de uma maravilhosa hediondez, que tratam de reduzir a pó a hipocrisia e a burrice de quem alardeia aos quatro ventos sua justiça, suas boas intenções, seu bom-mocismo, todas essas meras camadas de um verniz xexelento, que mal esconde a perversão das emoções calculadas. Eis a feitiçaria poderosa de belezas como esta coleção, fórmula de cujo impacto a Netflix parece vir se convencendo.

Não dá para entender por que “Gabinete de Curiosidades” passou tanto tempo sem a merecida divulgação. “Lote 36”, o enredo inicial da antologia, é o saboroso aperitivo que desperta a vontade de acompanhar os outros sete episódios, que só melhoram. Aqui, da mesma forma que acontece em “A Incrível História de Henry Sugar e Outros 3 Contos” (2024), compilação de meia dúzia de relatos curtos que o britânico Roald Dahl (1916-1990) produziu ao longo de meio século de carreira, outra obra-prima do gênero patrocinada pela Netflix, Guillermo Navarro fala de um velho que, tal como o avarento da peça do francês Molière (1622-1673), passa pela vida acumulando quinquilharias que podem ter algum valor além do afetivo, segredo que o diretor guarda até o instante em o mistério enfim amadurece e revela-se por si só. Quando ele morre, tudo vai parar num depósito, administrado de forma um tanto suspeita pelo ex-veterano de guerra interpretado por Demetrius Grosse. Nick Appleton, o novo proprietário dos bens do inquilino morto, obedece a seu faro e chega a uma mesa mediúnica que por seu turno conduz a um livro místico que pode valer até trezentos mil dólares se alguém tiver o condão de o tirar do lugar onde se encontra desde os anos 1940. Munido da famosa carranca e da silhueta esquelética de sempre, Tim Blake Nelson brilha na pele desse sujeito mesquinho, abrindo espaço para “Ratos de Cemitério”, de Vincenzo Natali, sem dúvida o melhor da seleção, com o justo equilíbrio entre tecnologia e a boa e a velha esquisitice toriana. Só assistindo para entender.


Filme: O Gabinete de Curiosidades de Guillermo Del Toro
Criação: Guillermo Del Toro
Ano: 2022
Gêneros: Terror/Fantasia/Drama/Mistério
Nota: 10