Indicado a 5 prêmios no Oscar 2024, filme baseado em novo clássico da literatura americana está no Prime Video Divulgação / Metro-Goldwyn-Mayer

Indicado a 5 prêmios no Oscar 2024, filme baseado em novo clássico da literatura americana está no Prime Video

Num tempo em que pululam os artistas sem arte, “Ficção Americana” chega a ser revolucionário. Não é de hoje que alguém precisa dizer verdades urgentes sobre a suposta participação de pessoas negras no cenário artístico-cultural — neste caso, por coincidência, dos Estados Unidos, mas a crítica é aplicável a qualquer pedaço de mundo desse insano século 21 —, e Cord Jefferson, reproduzindo a sensatez aristocrática de um esteta sem medo de acusações hipócritas, arvora-se do papel com graça e rigor.

Percival Everett, o autor de “Erasure” (2001), detectara há mais de vinte anos para onde poderia seguir o farelório sobre tudo encerrar um valor artístico, alicerce sobre o qual Roger Scruton (1944-2020), um dos mais importantes críticos de arte da História, construiu o farol majestoso que passou a guiar quem quer mesmo absorver o sentido do verdadeiramente belo, desviando transatlânticos de presunção, burrice e oportunismo para um porto bem distante.

Ferrenho defensor da beleza, na pintura, na escultura, nas páginas dos livros, no teatro, no cinema, Scruton argumentava que o belo tinha uma importância tão sua, tão imprescindível para que pudéssemos suportar a vida como ela é, que deveria pautar todo e qualquer comportamento humano, suscitando sempre novas apreensões em torno de sua simplicidade essencial.

Everett, como Scruton, sabe, contudo, que a boa estética não é exatamente algo que se manifesta de forma orgânica no cotidiano das pessoas. Há que se seguir alguns paradigmas canônicos no que concerne ao requinte da harmonia plástica em produtos culturais, precisamente para que não reste perdida a genuína ideia de obra de arte, muito distinta de como a entendem marqueteiros que se valem de uma promessa de oxigenação artística para, espertamente, transformar lixo — lixo brilhante e colorido, é verdade, mas lixo assim mesmo — em dinheiro, muito dinheiro. 

Em seu romance psicológico, Everett, professor distinto de inglês na Universidade do Sul da Califórnia, inclui o componente racialista quase como uma síntese de tudo quanto Scruton expusera ao longo da brilhante carreira. Thelonious Ellison, o protagonista de “Erasure”, em que o filme de Jefferson se baseia, não tem do que se queixar: não é rico, seus livros sobre Perseu e a luta do povo afro-americano por reconhecimento são escondidos nas prateleiras mais baixas das últimas estantes das livrarias, misturados com títulos de autoajuda, mas em compensação, ele não é obrigado a baixar a guarda para o politicamente correto, muito menos quando discute com seus alunos obras-primas a exemplo de “O Negro Artificial” (1955), em que Flannery O’Connor (1925-1964) esgrima acerca do inegável preconceito racial no sul dos Estados Unidos recorrendo à linguagem da época. Para sua surpresa, uma aluna, branca, sente-se ofendida; é o bastante para que se desencadeie uma altercação entre os dois, e, mais tarde, no mesmo dia, Ellison, desde criança chamado de Monk, em alusão, claro, a Thelonious Sphere Monk (1917-1982), um dos mais importantes jazzeiros do mundo, é suspenso.

A história sai da Califórnia para Boston, e Monk, trabalho irretocável pelo que Jeffrey Wright foi indicado ao Oscar de Melhor Ator, volta no tempo, encarando outra vez a família que há muito só sabia dele por uma ou outra aparição em entrevistas ou programas de debates exibidos a horas mortas. O roteiro de Jefferson e Everett vira a chave com força (até demais), colocando Monk num terreno muito mais pantanoso que anfiteatros cheios de jovens melindrosos criados a leite de pera.

Sua mãe, Agnes, sucumbe ao Alzheimer a olhos vistos e Lisa, sua irmã, recém-saída de um divórcio especialmente difícil, parece tão atordoada que não dá conta da própria vida. Nesse ponto, uma sucessão de infortúnio recai sobre as personagens de Leslie Uggams e Tracee Ellis Ross, que, curiosamente, são apagadas da história, o grande deslize em “Ficção Americana”. O núcleo da família de mister Monk, como o chama Lorraine, a empregada dos Ellison vivida pela adorável Myra Lucretia Taylor, se completa com Clifford, o irmão mais novo cirurgião plástico. Não é fortuito que Sterling K. Brown roube a cena na pele de um homem de meia-idade, também divorciado há pouco — mas em circunstâncias muito mais rumorosas —, e, como Wright, receba sua indicação a um prêmio da Academia, por Melhor Ator Coadjuvante.

O diretor principia a fechar o arco do conflito que sustenta boa parte da narrativa no momento em que Monk admite escrever um certo “My Pafology” (“minha patologia”, em tradução literal, corruptela de “pathology”, mais tarde renomeado indignadamente para “Poxa” – não, não é “Poxa”, mas aquela outra palavra com pê) sob o pseudônimo de Stagg R. Leigh, um suposto fugitivo das sistema carcerário. Embora divertida e engenhosa, a manobra leva o enredo a derivar um bocado, forçando a uma solução deus ex machina nitidamente inorgânica. Ainda assim, “Ficção Americana” é rico, essencial, refrescante e sincero. E como tem faltado sinceridade no cinema!


Filme: Ficção Americana
Direção: Cord Jefferson
Ano: 2023
Gêneros: Comédia/Drama
Nota: 9/10