Inspirado em Schopenhauer, filme na Netflix lucrou dez vezes mais que o próprio orçamento nas bilheterias Divulgação / 20th Century Studios

Inspirado em Schopenhauer, filme na Netflix lucrou dez vezes mais que o próprio orçamento nas bilheterias

Arthur Schopenhauer (1788-1860), defendia que a vida era somente uma vontade de vida, isto é, existimos sob a forma de mera sondagem de nossos próprios desejos, em especial dos mais vagos, desconhecidos, lúgubres, monstruosos. Para o filósofo, autor de “O Mundo como Vontade e Representação”, publicado em 1818, o homem não sabe dar azo às suas vontades, e não vai aqui nenhuma possível teoria de Schopenhauer acerca dos malefícios da autorrepressão.

Um garoto acanhado, cheio de sonhos que não poderá realizar nunca, talvez seja a encarnação mais perfeita do que o polonês teorizou sobre o que aconteceria com o meio em que nos inserimos e com nossa própria carne se tivéssemos o condão de estalar os dedos e chegar ao universo paralelo do sucesso infinito, e “Chronicle”, o registro de sua metamorfose.

Em menos de hora e meia, Josh Trank descreve a saga de um anti-herói à primeira vista inofensivo que acessa seus tugúrios depois do providencial socorro do acaso, circunstância sobre a qual ele não tem nenhuma responsabilidade, mas que sabe aproveitar como poucos. Trank e Max Landis, seu corroteirista, flutuam com graça por assuntos herméticos, espinhosos, indesejados, sagazes em transformar discussões filosóficas em ótimas sequências de ação e vice-versa, dosando umas e outras de modo quase cartesiano, erigindo respostas adequadas para problemas não óbvios.

Andrew Detmer tem uma obsessão por imagens e o que pode haver de oculto nelas. O passatempo que o consome é ficar horas operando uma filmadora e apontá-la para a janela e para a porta do quarto, esperando que algum fato novo e muito relevante se dê na frente de seus belos olhos tristes. O máximo que consegue são os berros do pai, Richard, bêbado às sete e meia da manhã, exigindo que abra a porta, ao que ele responde que vai continuar trancado, e que não insista, porque está gravando tudo.

Nesse primeiro contato do público com a história, Dane DeHaan e Michael Kelly oferecem apenas uma ínfima mostra do grande conflito a orientar a relação de seus personagens, agudizado quando de uma tragédia no princípio do terceiro segmento. Enquanto isso, os dois tentam não se matar e dividir o mesmo reduzido espaço, alternando-se nos cuidados a Karen, a mãe e esposa interpretada por Bo Petersen, que enfrenta com dignidade uma doença terminal.

Numa das raras vezes em que sai de casa, Andrew dá um passeio com Matt, e doravante, os dois estarão sempre juntos, discorrendo sobre a filosofia entre outros temas pouquíssimo apreciados por adolescentes e outras criaturas ainda em seus verdes anos.

O nome de Schopenhauer, um ilustre desconhecido para o personagem de DeHaan, vem à baila na boleia da caminhonete de Matt, com Alex Russell num refrescante contraponto ao desempenho do protagonista. Se Andrew não passa um segundo sem cobiçar e mesmo urdir súplicas pela extinção de sua vida, sua pulsão de morte jamais conspurca ao primo, que faz o que pode para mantê-lo estimulado.

As demonstrações de zelo de Matt ganham um reforço quando, casualmente, encontram um imenso buraco, com túneis escavados doze metros abaixo do chão. Mas Schopenhauer continua a aprontar das suas. Andrew, Matt e Steve Montgomery, o melhor amigo, de Michael B. Jordan, percorrem aquele labirinto de pedra e breu, que a fotografia de Matthew Jensen deixa ainda mais soturno, parando apenas quando a coisa mais esdrúxula que decerto já viram não se esconde mais.

Um cristal de dimensões inestimáveis emite luzes coloridas, quiçá reagindo ao calor daqueles corpos, e após esse momento, os três adquirem superpoderes que muito mais os atrapalham que fortalecem, com consequências desastrosas.

Todas as muitas cenas em que Trank dispõe seus atores principais como magos apocalípticos, flanando entre as nuvens e exercendo a telecinesia ao moverem com a força do pensamento bugigangas domésticas e automóveis, são só para exaltar ainda mais as ideias de Schopenhauer. Andrew tem todas as chances de usar seu novo dom em ações benemerentes, mas prefere empregá-lo em brincadeirinhas infames, a exemplo de lançar pessoas contra prateleiras de supermercado ou levar seus carrinhos de uma seção a outra.

Se parasse por aí, talvez nem fosse o caso para escândalo, mas sua leviandade cresce até redundar na delinquência, incluindo a morte de Steve. O diretor tenta sem êxito aliviar a barra de Andrew, agora um rematado vilão, assaltante — malgrado precise dos 750,83 dólares para salvar a mãe —, e homicida. No desfecho, ele parte de uma vez por todas para outro plano, sequaz mais bem-acabado do niilismo schopenhaueriano.


Filme: Chronicle
Direção: Josh Trank
Ano: 2012
Gêneros: Ficção científica/Thriller
Nota: 9/10