Perturbador e brutal, filme do ganhador do Oscar Daniel Kaluuya estreia na Netflix e prende o espectador do início ao fim Divulgação / Netflix

Perturbador e brutal, filme do ganhador do Oscar Daniel Kaluuya estreia na Netflix e prende o espectador do início ao fim

Reconhecer-se no mundo, sentir-se como parte da imensa vizinhança que é — ou que deveria ser — a humanidade passa antes por ter seu próprio refúgio, um lugar para chamar de seu, só seu, mas parece que este planeta, um ponto azul no sem fim do universo, tem se tornado ainda menor, em especial para quem não dispõe de um bom emprego, visível aos olhos da lei, que lhe assegure renda suficiente para tal.

Em “The Kitchen”, o britânico Daniel Kaluuya toca em feridas que não lhe são completamente estranhas. No complexo habitacional que dá nome a sua violenta ficção científica, cuja direção partilha com o cineasta Kibwe Tavares, pessoas das mais variadas origens são obrigadas a dividir o mesmo espaço, sob a forma de minúsculos apartamentos sem banheiro, sem ventilação ou luz naturais, cercados pela riqueza acintosa da megalópole que não quer saber deles.

A cidade que concentra o maior número de bilionários do mundo é capaz de isolar esses quarenta felizardos do restante dos homens (e, naturalmente, dos moradores de The Kitchen), mas lá pelas tantas, Kaluuya e Tavares fazem-nos notar seus incômodos vizinhos, que explodem numa insurreição ruidosa desafiando as autoridades e o estabelecido, num processo que talvez anteveja uma modalidade muito singular de apocalipse.

Izi, o embalsamador de cadáveres vivido por Kano, acorda de madrugada a fim de se arrumar e ir para o trabalho. No dia do seu aniversário, atravessa o longo corredor que separa seu quarto do banheiro, levando consigo a toalha e o sabonete, passa em frente aos outros cubículos de portas gradeadas no meio de paredes sem reboco, entra num cômodo de revestimento azul-claro e parece esquecer-se da vida, aproveitando a água quente, único luxo ali. Minutos depois, há o princípio de uma confusão, pessoas gritam reivindicando sua vez de usar o toalete, a luz vermelha de emergência dentro do box se acende, mas ele só sai algum tempo depois, escutando a recepção nada gentil dos outros.

Ele volta para sua habilitação e enquanto escova os dentes, recebe num espelho de aparência comum mensagens da incorporadora a que deve algumas parcelas do apartamento para onde pretende se mudar. O roteiro de Kaluuya e Joe Murtagh obedece à risca ao preceito de capturar a atenção do espectador já nos primeiros cinco minutos de projeção, depositando em Kano a responsabilidade por conduzir o filme até uma encruzilhada, momento em que Izi deixa um pouco mais frouxa a armadura do mocinho e mostra faces menos luminosas de seu personagem.

Na funerária, ele conhecera Benji, o filho de uma ex-namorada recém-falecida interpretado por Jedaiah Bannerman, e quanto mais estreitam laços, mais hostilidades brotam de parte a parte. 

Numa sequência num rinque de patinação meio sombrio, iluminado aqui e ali pelas roupas dos frequentadores, boa sacada da fotografia de Wyatt Garfield, a ponta de um conflito entre Izi e Benji torna-se evidente. Os diretores dão um jeito de relacionar essa primeira microvirada na trama à morte violenta de um líder comunitário no terceiro ato, o que desencadeia a barbárie que justifica a história.

Talvez o grande mérito de “The Kitchen” seja conseguir amarrar, com toda a sutileza, as vidas de seus personagens centrais a uma excrescência social de dimensões planetárias, com a qual todos sofremos de uma ou de outra maneira. Não é pouco para uma estreia.


Filme: The Kitchen
Direção: Daniel Kaluuya e Kibwe Tavares
Ano: 2023
Gêneros: Ficção científica/Thriller
Nota: 9/10