Obra-prima de Emerald Fennell cotada ao Globo de Ouro e Oscar está no Prime Video Divulgação / Amazon Prime Video

Obra-prima de Emerald Fennell cotada ao Globo de Ouro e Oscar está no Prime Video

Ricos vão desenvolvendo hábitos estranhos até para si mesmos, tudo para se manter o mais distantes quanto conseguirem da massa ignara, os pobres mortais que, trocando em miúdos, permitem-lhes jamais descer de pedestal de glória e encantamento com que os destino os premia. É claro que nunca há garantia o bastante de que fortunas colossais não derretam de um minuto para o outro e a magia se desvaneça para sempre, e por isso é que endinheirados e suas camarilhas rodeiam-nos, primando pela sutileza, mas também sabendo projetar suas garras quando necessário, dando conta de virtuais predadores antes que a cúpula perceba. 

No universo paralelo de “Saltburn”, todos têm a exata ideia do que significa sua posição na sociedade, conquistada sem uma gota de suor, e fazem de tudo para que as coisas permaneçam assim pelo século dos séculos, até que alguém fura a bolha. O esmerado texto da diretora Emerald Fennell tem muito de “Bela Vingança” (2020), não por acaso o filme com que faturou o Oscar de Melhor Roteiro Original, em 2021, e já orbita como grande favorito em premiações a exemplo do não menos reverenciado Globo de Ouro, a tradicional prévia para a láurea da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.

Fennell oxigena o conceito do usurpador genial e maldito que devassa uma jurisdição totalmente estranha, mas à qual deseja ardorosa e secretamente pertencer, mote quase esgotado por Anthony Minghella (1954-2008) em “O Talentoso Ripley” (1999), baseado no romance homônimo de Patricia Highsmith (1921-1995) publicado em 1955. A diretora-roteirista ambienta sua história nos anos 1980, uma década especialmente produtiva no cenário artístico britânico, mas “Saltburn” poderia muito bem se passar em qualquer parte do mundo, a qualquer tempo, a não ser por um detalhe que ela explora até o osso, e do qual ninguém enjoa.

O tal castelo em que 90% da trama se desenrola vira um respeitável coadjuvante, a ponto de não sentir-se a menor falta do pub e dos corredores do colégio em que Felix Catton e Oliver Quicktravam um contato à primeira vista artificioso, envenenado pela onipresença discreta, mas incisiva de Farleigh Start, e esses são os elementos da trindade diabólica em que o filme se alicerça. Tendo a chance de dar sobrevida ao desempenho magnético visto em “O Sacrifício do Cervo Sagrado” (2017), Barry Keoghan é muito mais sutil que Martin, o antagonista do longa de Yorgos Lanthimos, e quase tão dissimulado quanto o Tom Ripley de Highsmith e Minghella. 

Fennell remove sem pressa as muitas camadas de seu vilão, conseguindo disfarçar suas terceiras (e maléficas) intenções até o instante em que decide revelá-las. O personagem de ArchieMadekwe, um primo distante que nunca parece totalmente incorporado pelos Catton, tenta proteger Felix o quanto pode, mas sua influência é sempre limitada demais, e aqui a diretora igualmente deixa apenas sugerida a insignificância de Farleigh, provocando, por óbvio, discussões racialistas. Na pele do reizinho benevolente, Jacob Elordi é pouco mais que a encarnação da noblesse obligenaquele balneário no condado de North Yorkshire, na porção setentrional daInglaterra, dizendo uma outra palavra motivadora ao novo amigo, que leva a passar o verão com sua família no castelo enquanto não perde nenhuma chance de desfiar uma arrogância diáfana, menosprezando os quadros de Rubens (1577-1640) que decoram os corredores infinitos do castelo e entregando-se a prazeres solitários, os mais criminosos e os mais verdadeiros, na comentadíssima cena de onanismo e seus desdobramentos. Eu, de minha parte, não vi nada de mais.

O plano-sequência do epílogo, com Keoghan despido num extensa dança solitária pelas dependências vazias daquela fortaleza sinistra, dá a “Saltburn” o requinte que perseguira por 130 minutos, consagrando Oliver como o grande vitorioso nessa disputa insana por glamour e poder. Ele se basta, e em seu legítimo habitat, transforma-se no deus do paraíso que sempre julgara merecer.


Filme: Saltburn
Direção: Emerald Fennell
Ano: 2023
Gêneros: Thriller/Comédia
Nota: 9/10