A história de Joan Didion: filme da Netflix conta a história de uma das maiores escritoras americanas de todos os tempos John Bryson / Netflix

A história de Joan Didion: filme da Netflix conta a história de uma das maiores escritoras americanas de todos os tempos

Se ser mulher já foi muito mais difícil, ser Joan Didion (1934-2021) parece ter sido uma bênção. A filha mais rebelde de Sacramento mantinha com sua terra uma relação ambígua, ora de choroso e franco saudosismo, ora de uma revolta servil, como se no fundo se sentisse grata àquele chão pelo muito que pudera absorver, nem que fosse para fazer tudo ao contrário. “Joan Didion: The Center Will Not Hold”, o belo documentário dirigido e produzido por Griffin Dunne, conta parte da história de uma mulher muito destemida, que sempre soube o que queria da vida e nunca se intimidou com as rasteiras que tomou da vida. Espírito verdadeiramente livre, Didion absorvia mais do que os outros os reveses de sua geração, presciências que colocou no papel em milhares de artigos, que se desdobraram em cerca de meia centena de livros. 

A própria ensaísta concede um longo depoimento a Dunne, sobrinho do escritor John Gregory Dunne (1932-2003), o homem com quem ficou casada por quase quarenta anos, acompanhada pelas palavras gentis e reveladoras de amigos como os jornalistas Calvin Trillin, David Hare e Hilton Als, além de Robert Benjamin Silvers (1929-2017), o mandachuva da poderosa New York Review of Books entre 1963 a 2017. Foi Silvers quem convenceu Didion a seguir para El Salvador no começo dos anos 1980 a fim de enfronhar-se na guerra civil que se já se estendia no país desde 15 de outubro de 1979 e foi até 16 de janeiro de 1992, matando oitenta mil cidadãos, doze mil só em 1981.

Da experiência, nasceu “Salvador” (1982), um de seus livros-reportagem mais conhecidos e ovacionados — quatro anos depois, Oliver Stone lançaria “Salvador – o Martírio de um Povo” (1986), sobre um fotógrafo recomeçando a vida naquele país da América Central, e Noam Chomsky deu seus pitacos em “O Que o Tio Sam Realmente Quer”, acerca da suposta importância de guerrilhas de esquerda no restabelecimento da paz. Da narrativa pulsante e fluida dessa contadora de histórias detalhista, quase à prova de equívocos, vieram também artigos sobre a mente cavernosa de Charles Manson (1934-2017), líder de uma seita extremista baseada no recanto mais ensolarado dos Estados Unidos, e o impacto da Guerra do Vietnã (1955-1975) na juventude da América; todas as ideias da mais tresloucada originalidade ganhavam vida pelas mãos de uma profissional enamorada de seu ofício, destra ao misturar arte e informação em textos caudalosos, pensados para quem não se conforma em ficar na superfície. Uma proeza que ela decerto não teria atingido se permanecesse em sua aldeia.

Sacramentoé um quadro velho numa parede suja para Didion, ainda que se percebam furtivas lágrimassubirem-lhe ao raso dos olhos sempre que fala da infância. Dunne, o sobrinho torto, inspira em sua biografada a confiança para tornar a assuntos doloridos, a começar pela Caravana Donner, o grupo de pioneiros americanos que deixaram o Meio-Oeste em direção à Califórnia e acabaram ilhados no inverno quase glacial de Serra Nevada. Foi assim que os tataravós da escritora chegaram à Califórnia, onde se integraram às colheitas de uva, laranja e pêssego, saga que John Steinbeck (1902-1968) destrincha com beleza e horror em “As Vinhas da Ira” (1939).

Aos 82 anos, nota-se em seu semblante a placidez um tanto beatífica de quem fez tudo certo — ou dedicou-se muito para tal — e os causos em que a escritora relembra a mãe, que a estimulou a ir para Nova York após a formatura, tentar uma vaga de redatora na “Vogue”, são recebidos com a mesma boa nostalgia pela audiência. Didion deixa escapar um travo de amargura ao recordar as mortes de John Gregory e Quintana Roo Dunne (1966-2005), a filha que adotaram com alguns dias de nascida, obliquamente ligadas. Essa vivência acerba foi exorcizada em “O Ano do Pensamento Mágico” (2005), uma pausa na dureza das pesquisas sobre temas afeitos à política externa, à psicologia e à religião para falar de sua própria concepção de existir e morrer. Os 94 minutos de “Joan Didion: The Center Will Not Hold” são uma gota num oceano de paixão, técnica e lirismo. De fato, o centro não aguenta mesmo figuras como Joan Didion.


Filme: Joan Didion: The Center Will Not Hold
Direção: Griffin Dunne
Ano: 2017
Gêneros: Documentário/Biografia 
Nota: 10