O tesouro argentino que você precisa descobrir agora na Netflix Divulgação / Los Griegos Films

O tesouro argentino que você precisa descobrir agora na Netflix

“Norma” é mais um filme latino-americano em que mulheres de feitios os mais diversos são colocadas à prova no que podem ter de mais íntimo, de mais nobre, batendo-se consigo mesmas ao revirar seus baús de ossos à cata de uma migalha qualquer de amor-próprio.

A vida da personagem-título do filme do argentino Santiago Giralt parece um conto de fadas, onde não há espaço para nenhum paralelo com o chão da realidade, até o dia em que um evento inesperado e banal à primeira vista descortina um rol de situações que não domina, experiência nova, angustiante, mas também salvífica, a partir da qual percebe o que verdadeiramente é e se vale a pena continuar a sê-lo. Honrando uma espécie de tradição do cinema feito em seu país, Giralt retrata tipos humanos com tamanha profundidade que é necessário tomar-se fôlego por inúmeras vezes até que se principie a alcançar quem de fato são aquelas pessoas, diferentes, mas guardando em algum lugar misterioso o suplício que as irmana. 

Uma placa dá as boas-vindas a Las Tucas, cidadezinha conservadora do interior da Argentina. Faz sol, a copa das árvores emoldura o céu azul, tudo muito bem sublinhado pela fotografia de Guillermo Saposnik — cores são um elemento de destaque nos 93 minutos de projeção, conforme o atesta o verde-abacate das paredes da casa da protagonista, suas roupas e seu carro, um coadjuvante que rouba a cena no desfecho —, Norma chega com as compras e grita por Rosa, a empregada.

Uma vez que ela demora a responder, ela entra em casa já com boa parte das sacolas, e encontra Rosa, ou Rosita, como ela também se refere à funcionária, prostrada na mesa, pedindo-lhe para que conversem. Quase num sussurro, Rosa diz que arrumou um novo emprego e vai embora, sem esperar ao menos o término do mês, ao que a patroa até tenta ensaiar um contra-argumento, mas cede sem maiores queixas, talvez policiando-se para não dar a impressão de que sentir-lhe-ia a falta.  

Nesse segmento, lacônico, mas pungente, está a essência finíssima de trama. Norma fica genuinamente surpresa, faz acusações veladas à agora ex-colaboradora, afirma que pensava que se sentisse como se fizesse parte da família, mas tem de ouvir de Rosa que gente “da família” senta-se à mesa com os outros na hora das refeições. Mercedes Morán, onipresente na narrativa, coestrela o primeiro de muitos pontos altos de “Norma”, no qual quem brilha mesmo éClaudia Cantero, equilibrando-se sem nenhuma dificuldade entre a melancolia dessa figura acostumada a maus-tratos, e que tinha, afinal, sua vindita.

Na sequência, a anti-heroína de Morán surge compungida, mas ninguém se atreve a cravar se por causa da ausência de Rosa ou se porque está sentindo na pele o rigor do trabalho de casa. Seu desespero é tamanho que vai bater à porta do consultório de Inés, a filha obstetra vivida numa participação-relâmpago por Mercedes Scápola, filha de Morán na vida real, certamente uma das explicações para a fluidez do longa, cujo roteiro é uma parceria de Giralt e sua estrela, arriscando-se na função pela primeira vez, mas já deixando no ar a possibilidade de novas incursões como roteirista. Os dois passam para a tela “Señales de Humo” (“sinais de fumaça”, em tradução literal), o romance ainda inédito escrito pelo diretor, num movimento inédito e meio antinatural, dado o que sempre se viu.

Giralt é hábil na condução de enredos paralelos que em mãos menos zelosas redundariam num dramalhão indigesto. Pelo contrário: quanto mais o filme caminha, menos palpável torna-se a lembrança do diálogo entre as personagens de Morán e Cantero, embora a acrimônia jamais arrefeça de todo. Uma trincheira de contenção para a artilharia de péssimos sentimentos que vêm e vão no cotidiano vazio de Norma é cavada por Judith, a melhor amiga bicho-grilo interpretada por Lorena Vega.

Do momento em que vai à casa de Norma com mais duas amigas, duas garrafas de espumante, na virada do primeiro para o segundo ato, ao “resgate” da personagem central numa delegacia, na conclusão, num episódio tragicômico que faz menção ao nome do livro de Giralt, Judith está em todas, num relato almodovariano e personalíssimo sobre mulheres, suas neuroses, seus pecados e sua redenção. Norma e Morán estão visceralmente imbricadas, assim como seus nomes.


Filme: Norma
Direção: Santiago Giralt
Ano: 2023
Gêneros: Comédia/Drama
Nota: 8/10