O terror na Netflix que não vai subestimar sua inteligência Divulgação / 20th Century Studios

O terror na Netflix que não vai subestimar sua inteligência

Depender da bondade de estranhos nunca é o melhor dos mundos. Quando essa é a única saída, entretanto, todo cuidado é pouco no que se refira a manter-se a salvo de inimigos cuja verdadeira essência fica cada vez mais obscura, como se as luzes faltassem, o ar se tornasse rarefeito de súbito e se entrasse num dédalo cujo chão se abrisse à medida que sentisse a força dos passos do infeliz ali encarcerado. Essa é a sensação que Tess Marshall, a protagonista de “Barbarian”, divide com o espectador em 102 minutos de uma história tensa, como se pensada em seus detalhes mais vagos para assustar, embora todos nos perguntemos por mais de uma vez onde foi que vimos algo bastante próximo há não muito tempo.

É nítido que Zach Cregger é um realizador talentoso, mas a iteração ostensiva de alguns clichês não colabora para a apreensão da trama, bem conduzida num andamento entre o farsesco e o bizarro, malgrado reserve uma surpresa no desfecho palatável para quem já desfruta de certa intimidade com o gênero. O texto de Cregger balança do terror para passagens involuntariamente cômicas, sem que se consiga desvendar, afinal, a intenção do longa. 

O terror proporciona uma infinidade de modos de se pensar o mundo, os costumes, a vida, e… rejeitar o mundo, os costumes, a vida — pelo menos a vida como a entendemos sob muitos aspectos desde tenra idade. Manifestações sobrenaturais talvez sejam os únicos fenômenos que o homem não consegue dominar de todo, decerto por causa de sua incômoda proximidade com a alma humana, ou melhor, com o mais torpe, o mais reles, o mais repulsivo da alma humana. O mundo, um lugar cuja hostilidade persegue-nos sem descanso, cada vez mais, aonde quer que se esteja, fica ainda mais perigoso depois de certas experiências, de certos passeios pelo que quase nunca se revela. Trazer para o reino dos vivos os que já partiram desta para uma melhor — ou não — pode ser o melhor jeito de acrisolar falsos pudores, até que o feitiço começa a virar contra o feiticeiro, a bruxa cai da vassoura, morde o vampiro e salve-se quem puder.

A morte não é questão de gosto, mas um fato. Admiti-la ou não; desejar que venha o mais tarde (ou o mais cedo) possível; superar temores comuns a qualquer indivíduo minimamente equilibrado, como deparar com o fim de quem julgávamos imortal; entender que cabe-nos apenas o usufruto da vida, que da morte o destino, seja lá o que isso signifique — Deus, diabo, sorte, azar — se encarrega, é uma verdadeira missão com que cada um arca respaldado, se muito, pela própria consciência.

Tess, uma documentarista que precisa morar em Detroit por algum tempo, aluga uma casa simples num bairro afastado da cidade. Ela chega sob um dilúvio, o código de segurança que recebe por telefone para o acesso ao imóvel muda mil vezes, procura e não encontra a chave que deveria estar dentro do pequeno porteiro eletrônico, não consegue ser prontamente atendida por Bonnie Zane, a corretora da agência imobiliária Wayne com quem fechara negócio, ate que a porta finalmente se abre. Keith, o primeiro inquilino, insinua que o aplicativo usado pela moça pode ter falhado, e a convida a entrar.

Georgina Campbell e Bill Skarsgård, o Palhaço Pennywise de “It — A Coisa” (2017), a adaptação do livro homônimo de Stephen King dirigida por Andy Muschietti, saem-se bem nesse primeiro contato da audiência com o enredo, mas o filme demora tanto a engrenar que o mérito vai mesmo para Justin Long e seu AJ, o atrapalhado caçador da assombração que atende pela singela alcunha de Mãe, de Matthew Patrick Davis. Nos raros bons momentos, “Barbarian” parece uma cópia barata de “O Homem nas Trevas” (2016), o engenhoso longa do uruguaio Fede Alvarez, e a mensagem que Cregger parece querer transmitir é quanto à pouca confiabilidade de plataformas digitais que locam casas e apartamentos. Se Tess Marshall conhecesse uma certa Blanche DuBois… 


Filme: Barbarian
Direção: Zach Cregger
Ano: 2022
Gêneros: Terror/Mistério
Nota: 7/10