A pérola do cinema argentino que você precisa descobrir hoje na Netflix Divulgação / Tiger House Production Company

A pérola do cinema argentino que você precisa descobrir hoje na Netflix

A corrida das mulheres pela beleza não tem fim. Todo santo dia começa para elas uma maratona de águas, cremes, batom, máscara para cílios, pó compacto para o rosto, tudo na intenção de perder alguns anos e ganhar o mundo, vingando as bruxas de quatrocentos atrás, a grande maioria apenas garotas perdidas em meio ao obscurantismo e à irrelevância que era-lhes destinada numa sociedade desabridamente hipócrita, bestial, que as queria apenas para fins domésticos, como vacas ou porcas, com a vantagem de saberem cozinhar, limpar, atender aos desejos sexuais dos maridos e, claro, dar-lhe uma prole sadia. “Não Enche!” não vai tão fundo;

mesmo assim, o filme da argentina Azul Lombardía encontra um jeito de cascavilhar uma das questões mais amplas de uma pós-modernidade tola e tirar de dentro conclusões luminosas, inclusive ao fomentar a discussão sobre medidas judiciais a serem tomadas no caso de falhas grosseiros nos tais procedimentos estéticos, novo filão do direito que cresce a olhos vistos. Rosto muito conhecido da televisão de seu país, Lombardía estende para seu novo trabalho algumas das abordagens a que já se deteve em “Dóberman” (2019), seu longa de estreia, com destaque, claro, para a nova configuração social com que as mulheres nunca deixaram de sonhar — mais inclusiva, mais tolerante, mais justa — e a avalanche de consequências que sobrevêm daí. Tudo com um humor bastante perspicaz.

Uma estrela de televisão e uma dona de casa têm muito mais em comum do que podem supor. Ángela Trigal, a vamp encarnada por Carla Peterson, está muito mais acostumada à pressão de estar sempre linda — e, de preferência, linda para sempre —, é verdade, mas Vera Lombardi, a personagem de Julieta Díaz, também experimenta em diversas ocasiões ao longo de menos de 24 horas a sensação de estar sendo trucidada pela engrenagem perversa de ter de dar conta das filhas, da casa, do marido, sem que nunca sobre um minuto para si mesma. Astuta, a diretora introduz o drama de cada uma da maneira mais óbvia que consegue, mantendo a graça do que quer dizer socorrendo-se de cenários sempre coloridos demais, bem-valorizados pela direção de arte de Yamila Fontán.

Se a primeira cena apresenta Ángela diante de uma bancada de cosméticos para todas as circunstâncias, um frasco para o dia, outro para a tarde e o terceiro para ser aplicado à noite, e gelatinas para o cabelo e unguentos para a as mãos, pouco depois Vera, que levanta uns trocados confeccionando uma mistura dermatológica algo suspeita, surge numa altercação com Ramiro, o marido interpretado por Alfonso Tort, sobre o quanto cada um trabalha de verdade. O roteiro entra ainda, num tom farsesco, mas com muita verossimilhança, nas ciladas de ofício da anti-heroína de Peterson, numa performance cômica e sensível, pagando um preço alto demais por ser quem é, como na entrevista a um talk show para divulgar uma nova empreitada profissional. Ángela e Vera se juntam numa conjuntura pouco auspiciosa, depois de reações pouco sensatas frente ao estresse prolongado, com direito a um embate quase maniqueísta contra Edgardo Sanchez Leven, o cirurgião plástico meio picareta de Salvador del Solar.


Filme: Não Enche!
Direção: Azul Lombardía
Ano: 2023
Gêneros: Comédia
Nota: 8/10