Drama com Chadwick Boseman é tesouro escondido na Netflix Divulgação / Canal+

Drama com Chadwick Boseman é tesouro escondido na Netflix

Sagas familiares começam pelos motivos mais excepcionais, mas sempre têm um propósito em comum: frisar a necessidade de se manter os vínculos com o que somos desde antes que soubéssemos o que nos prepararia o mundo. Há quem se perca pelos descaminhos que se vendem como um atalho para a felicidade, do mesmo modo que existem os que não se conformam com aquilo que todos julgam como o natural, e dessa luta emergem as tramas de sofrimento e resistência de que é feita a própria humanidade e lhe conferem sentido. “King: Uma História de Vingança” é exatamente o que sugere o título, mas não só. No filme, Fabrice Du Welz capta com maestria o espírito de autopreservação de um homem, mesmo que já tenha perdido boa parte de tudo quanto poderia socorrê-lo em sua busca por dignidade. Leva algum tempo, mas o anti-herói que protagoniza essa história percebe que brigar de igual para igual não é a melhor saída. É preciso ter o mesmo sangue frio de seus inimigos caso deseje levar seu plano de desforra adiante.

Se muitas vezes a vida tem todas as cores de uma farsa, por mais real e furiosa que seja, em outras tudo é estranhamente sério, sobrando pouco espaço para fantasias de qualquer natureza ou tergiversações quanto ao caráter justo ou injusto da realidade. Momentos em que viver sembra como um teste, em que as respostas precisas têm de ser dadas, ainda que os sonhos insistam em gritar. Jacob King não tem esse nome por acaso. Chadwick Boseman (1976-2020), um dos atores mais elegantes que Hollywood já conheceu, incorpora um legítimo guerreiro tribal da África do Sul, um homem que passa por cima de seus brios em nome da única causa que julga digna de seu esforço. O espectador necessita colocar em prática sua boa vontade e dar um voto de confiança ao forasteiro, que deixa seu país com a cara e a coragem rumo à América sem lenço nem documento alegando estar a passeio, uma vez que o roteiro de Oliver Butcher e Stephen Cornwell só desfaz todos os mal-entendidos na derradeira sequência. Logo se conhece sua verdadeira razão, que mais o atrapalha que o ajuda: sua irmã Bianca, de Sibongile Mlambo, está sumida há meses e o que ele descobre a respeito da moça só faz com que suas preocupações recrudesçam. Quando Du Welz dirime qualquer chance de equívocos residuais, graças à intervenção do comerciante vivido por Paul H. Kim — e assim reforça o conceito dos Estados Unidos como uma nação etnicamente diversa, malgrado nunca se toque no assunto com todas as letras —, e King se depara com a verdade, Boseman vira a chave de seu anti-herói, que se encarniça dos algozes de Bianca, tendo por pista mais relevante Armand, o filho de seu então namorado, um traficante de drogas conhecido pela maneira cruel como trata quem deve-lhe dinheiro. O problema é que Armand, papel de Diego José, também está sumido.

Aporta ao enredo um núcleo completo de coadjuvantes, com destaque para a prostituta Kelly, encarnada por Teresa Palmer — com quem o protagonista nunca tem nada, por mais que a garota se derreta frente a seus olhos mais fundos que um brejo e o sorriso de mil dentes cintilantes como pérolas —, e o gângster Wentworth, de Luke Evans, líder de uma quadrilha formada por mafiosos do Leste Europeu. Independentemente da bagunça conceitual, “King: Uma História de Vingança” vale a apreciação por aspectos colaterais, a exemplo da fotografia mesmerizante de Monika Lenczewska e, claro, para matar a saudade de Boseman, um ator maiúsculo para muito além de “Pantera Negra”.


Filme: King: Uma História de Vingança
Direção: Fabrice Du Welz
Ano: 2016
Gênero: Thriller
Nota: 8/10