Um dos principais lançamentos de 2023 acaba de estrear na Netflix Divulgação / Netflix

Um dos principais lançamentos de 2023 acaba de estrear na Netflix

Instinto é uma palavra que serve perfeitamente a Sylvester Stallone. Ninguém chega aonde Stallone, o astuto, ainda está sem uma descomunal medida de transcendência, de achar seu propósito de vida seguindo a própria intuição, sem muitas vezes inventar do zero esse propósito, até que, como diz a voz cava das ruas, a água penetra o rochedo depois de sucessivos golpes.

Um dos astros mais queridos de Hollywood abre “Sly”, o documentário de Thom Zimny em sua homenagem, reforçando o óbvio: ninguém está a salvo do tempo e sua fúria, nem mesmo ele, a personificação cabal do macho, em especial, o americano, de qualquer sangue, origem, poder aquisitivo ou ideologia. Este é um tópico a que Zimny se atém para explicar os sucessos e os fiascos de seu biografado, inversamente proporcionais se tomados em contraposição ao que pensam dele crítica e público, respectivamente, mas só depois de quase esgotar as perturbadoras iluminações filosóficas de um homem que até hoje é visto como um pedaço de carne, um brucutu, um idiota útil, alguém programado pelo tal sistema para dar à patuleia mundo afora a diversão barata e descartável capaz de anestesiá-la e manter seu silêncio para tudo quanto importa. Sly não se ofende — ou aprendeu a fingir que não se ofende.

Na mansão portentosa onde ainda morava, em Beverly Hills, vendida para Adele, Stallone faz um balanço irreverente, tocante, lúcido e, mais importante, desarmado de sua trajetória até aqui. E pelo que se absorve de suas palavras, ele tem muita lenha para queimar.

A verdade é que o cinema feito por Sly é para gente sofisticada, que não precisa do beneplácito de quem quer que seja para pensar dessa ou daquela forma, e se dá ao luxo de não depender do crivo do politicamente correto. Pouca gente em Hollywood entende de cinema como Stallone, e não por acaso gente do calibre de Quentin Tarantino, entrevistado por Zimny, espelhou-se nele para ter uma ideia, mesmo que bastante rudimentar e um tanto etérea, sobre o que fazer para chegar lá.

Analisando-se a frio essas duas personalidades do cinema, à primeira vista tão díspares uma da outra, são pródigos os exemplos que ligam Sly a Tarantino, que captou na violência os desejos mais secretos do público, uma ânsia por liberação que, goste-se ou não, o veterano sacia à farta. Nem mesmo a acusação de ator de um só papel lhe cabe. Por trás da pretensa monotonia dos tipos incorporados por Sly, existem sutilezas que, outra vez, urge alguma bagagem para desfrutar.

Se em “Rocky: Um Lutador” (1976), de John G. Avildsen (1935-2017), Stallone era o pugilista amador, pobre e mulherengo da Filadélfia obrigado a se superar numa luta injusta, em “Rambo — Programado para Matar” (1982), de Ted Kotcheff, ele, já reconhecido como um grande astro, era um ianque mentalmente fragilizado, perdido no Vietnã em guerra, até ser capturado e sofrer as torturas de um inimigo tão sanguinário quanto ele. Mais tarde, já entrado em anos, Sly encabeça um grupo de experientes guerreiros a soldo que unem o útil ao agradável: fazem fortuna e se mantêm em forma invadindo ditaduras na América do Sul. Dos três, “Os Mercenários” (2010) é decerto o mais kitsch, o mais trash, o mais desencontrado dos filmes de Stallone, que não por acaso também o dirigiu, mas um de seus trabalhos mais afetivamente preciosos, uma visita ao gênero que pensara já ser página virada em sua carreira, e, o principal, uma oportunidade de reconectar-se às plateias que o viram nascer e para a fama e cativar novos fãs.

O Oscar de Melhor Filme para “Rocky” abafa a primeira aparição de Stallone na tela, no drama pornô “O Garanhão Italiano” (1970), do centenário Morton M. Lewis, providencialmente esquecido. Outras cafajestadas da vida profissional e da intimidade, a exemplo das propostas indecentes para Pamela Anderson, também perdem a razão de ser no momento em que o filme elabora a ilação, acertada, que Sly é um dos revolucionários silenciosos do cinema universal, primeiro a tornar-se a primeira celebridade a escrever roteiros e arriscar-se na direção, e o único a estrelar (e no caso de “Os Mercenários” também dirigir) três franquias. Nada mal para um garoto da Hell’s Kitchen, um dos bairros mais violentos da Nova York dos anos 1950, cidade para onde está voltando.

Sempre encarei a hipertrofia muscular de certos homens como uma necessidade quase vital de aprovação. Nesses homens musculosos vivem garotos assustadiços, mas que lutam contra seus medos com uma força ainda maior, que o mundo passa a conhecer na hora certa. Em “Sly”, Sylvester Stallone não deixa pedra sobre pedra.


Filme: Sly 
Direção: Thom Zimny
Ano: 2023
Gêneros: Documentário/Biografia 
Nota: 9/10