Suspense com Rene Zellweger, na Netflix, vai te levar ao limite da tensão e do medo Divulgação / Paramount Vantage

Suspense com Rene Zellweger, na Netflix, vai te levar ao limite da tensão e do medo

Crianças podem ser especialmente perversas. Por detrás de rostinhos imaculados, gestos afetuosos, maneiras estudadamente contidas, podem estar as intenções mais diabólicas, cujo freio cabe aos adultos. A crueldade infantil, consciente ou não, foi primorosamente esquadrinhada pelo escritor britânico Richard Hughes (1900-1976) em “Vendaval em Jamaica” (1929), clássico involuntário da pedagogia fundamental para se entender até onde pode ir o horror dos pequenos por tudo quanto não seja seu próprio umbigo, embora em muitas ocasiões já tenham idade para refletir e saber que estão agindo mal. Do romance de Hughes nasceu o filme homônimo de Alexander Mackendrick (1912-1993), em 1965, e dele continuaram a surgir pérolas a exemplo de “Caso 39”, cuja antagonista decerto ombreia com os petizes que assistem inertes à morte de um homem e não fazem a menor questão de interferir no julgamento de homens cuja inocência poderiam testemunhar. Aqui, o alemão Christian Alvart manifesta todo o seu desprezo ao politicamente correto e despeja uma inaudita capacidade de fazer o mal sobre uma garotinha acima de qualquer suspeita, o que, claro, nunca deixa de suscitar polêmicas. Diante de uma história como essa, hipócritas logo fazem questão de externar seu desconforto — sem perceber a sutileza das entrelinhas. 

Uma casa grande e escura abre o roteiro de Ray Wright. É ali que mora sozinha Emily Jenkins, a abnegada assistente social vivida por Renée Zellweger, indo e voltando do trabalho sem ter muita vontade de expandir seus horizontes afetivos, tentando resolver desavenças de família como as do garoto cuja selvageria quase inexplicável o leva a comprar uma briga na escola todos os dias, sendo que na mais recente, mandou um colega ao hospital. Malgrado saiba que há chances substanciais de o menino estar apenas replicando a violência a que assiste em casa — se não for ele próprio uma vítima silente dessa violência. Por mais que se empenhe, Emily nunca consegue fazer muito por seus clientes, e esta já é a 38ª ocorrência em que sua capacidade de tolerar frustrações é testada, com a participação efetiva de Wayne, o chefe, de Adrian Lester. O 39º caso do título chega pouco depois, e ela está decidida a, desta vez, passar por cima de qualquer um a fim de não deixar um inocente à mercê de adultos pouco ciosos de seus deveres paternos. Emily ouve as partes, marca uma reunião na casa da família e se encanta por Lilith Sullivan, a filha adotiva de  Margaret e Edward, que parece mesmo ser criminosamente negligenciada pelo casal. As performances de Kerry O’Malley e Callum Keith Rennie crescem depois de certo ponto, momento em que Lilith se investe de um poder destrutivo que só ela mesma controla. A adoção de Lily pela personagem de Zellweger define a virada por que se aguardava desde o início. Se Emily já não tinha tempo (e tampouco desejo) de ceder aos belos olhos de Doug, o melhor amigo, com Bradley Cooper numa função meramente protocolar, agora nem que quisesse: a menina ocupa-lhe todos os espaços — e isso não tem absoluta nada de poético. 

Uma conversa com Edward, no hospital psiquiátrico onde fora internado com a mulher, esclarece boa parte do mistério do filme, para o público e para Emily, que, compreensivelmente, não pode dar ouvidos a tanta novidade sem nenhuma prova. Mas ela vem: num domínio assombroso de Lilith, Jodelle Ferland encarna o próprio demônio das enfermidades e da morte da mitologia suméria, o que se verifica com a súbita desgraça que colhe o detetive Mike Barron, um dos poucos que sempre apoiou Emily em sua batalha perdida pelos oprimidos sem voz. Esta é a gota d’água. Lilith é expulsa de casa, mas é tarde: ela já conhece os pontos fracos da mãe, e é justamente aí que se encontra a chave do enigma proposto por Wright. Lilith até pode ser real — Alvart faculta ao espectador a decisão —, mas sua natureza sobre-humana é o que lhe confere sua força maligna. 

Todo o nonsense de “Caso 39” é explicado no furor da conclusão, de uma vez. Tal como em “Boa Noite, Mamãe!” (2022), de Matt Sobel, Alvart compõe um engenhoso mosaico acerca das inseguranças da maternidade. O pavor de Emily de se tornar a mãe desmazelada que a criara teve o condão de tumultuar suas emoções e estrangular-lhe o ímpeto de ser mãe, resgatado por Lily, esse fantasma sempre tão palpável na vida de todos nós. Há quem o consiga exorcizar e ser para seus filhos o que seus pais não puderam ser; por lado, há quem não se arrisque, sem nunca saber se venceria suas limitações. Cada um ouve sua resposta, sem a necessidade da falsa preocupação por parte de quem quer que seja.


Filme: Caso 39
Direção: Christian Alvart
Ano: 2009
Gêneros: Terror/Thriller
Nota: 8/10