Na Netflix, anti-herói de Keanu Reeves vai manter seus olhos vidrados na tela por 109 minutos Divulgação / Twentieth Century Fox

Na Netflix, anti-herói de Keanu Reeves vai manter seus olhos vidrados na tela por 109 minutos

Se estivesse certo o existencialismo de pé quebrado de Sartre e Beauvoir e o meio fosse mais importante que a própria natureza humana, Tom Ludlow seria o garoto-propaganda perfeito do casal mais pop da filosofia francesa do século 20. Quanto mais Ludlow, o protagonista de “Os Reis da Rua” interpretado por Keanu Reeves, tenta se livrar da pecha de um dos agentes mais ferozes do ambíguo Departamento de Polícia de Los Angeles, o LAPD, mais arraiga-se no enredo diabólico que custa-lhe o ofício, depois de já ter vivido uma tragédia pessoal dura de superar. Experiente em conduzir tramas que fundem em igual proporção o melhor e o pior de homens comuns, adicionando a isso, claro, toda a velocidade e a fúria possível, David Ayer realiza proezas louváveis, mas não deixa de escorregar nas cascas de banana do roteiro, a cargo de ninguém menos que James Ellroy e dois colaboradores, Jamie Moss e Kurt Wimmer. O texto de Ellroy baseia-se num amálgama de seus romances policiais de maior estima junto ao público, “L.A. Confidential” (1990) e “Dália Negra” (1987), mas como isso aqui é cinema, depende sobremaneira do carisma de Reeves e da mão firme aliada ao olhar sensível de Ayer, conhecido pela irregularidade. E justamente assim se dá com “Os Reis da Rua”, que numa matemática imprecisa acerta uns 70%, embora a fração que resta tenha um peso nada irrisório.

Há sempre uma nuvem de artificialismo volitando sobre os personagens de “Os Reis da Rua”, Ludlow à frente, por óbvio. Reeves tenta manter as rédeas da banalidade de seu anti-herói, mas quão trivial pode ser um homem que dorme vestido e antes mesmo de despertar por completo, saca seu revólver e só então encaminha-se ao banheiro para dar conta de suas abluções matinais? Esse é sem dúvida o momento em que o espectador tem mais chances de desvendar os segredos de polichinelo do investigador, que parece vaguear um pouco demais antes de sair para o novo dia de trabalho sob o lindo sol laranja que não o irá proteger, quadro bertolucciano da fotografia de Gabriel Beristain. À noite, ele está em Koreatown enchendo a cara, misturando-se perigosamente à fauna do lugar, cometendo injúrias raciais contra possíveis mafiosos coreanos e dando vazão a uma aura matadora espantosa até para quem manja do riscado, para não falar no ataque a uma gangue de bandidos com tamanha perícia que só mesmo quem assiste à cena pode testificar que estava sozinho. Ludlow é digno de todas as honras, alegaria certa direita tresloucada que infesta o mundo desde sempre, mas não os poucos executores da lei que ainda praticam a retidão na Cidade dos Anjos, entre os quais Terrence Washington, uma espécie de alter ego do desbocado colega, o único a responder com a necessária veemência à hediondez de suas imprecações assumidamente racistas. Terry Crews é o reverso da moeda cunhada pelo antimocinho de Reeves ao personificar a genuína decência, o verdadeiro temperamento altivo, orgulhoso da cor de sua pele e de tudo quanto ela representa. De propósito ou sem querer, o diretor robustece um sarcasmo deleitoso, irrogando ao mestiço Reeves a execrável função de defensor da supremacia branca, quando Ludlow e Washington são estranhos frutos de uma mesma árvore torta. Os reis da rua do título.

O tormento de Ludlow e o verdadeiro mote da história, o assassinato de um policial, cuja suspeita recai sobre o anti-herói, perdem-se em meio às bem-intencionadas tentativas de Ayer quanto a equiparar fielmente cenas a passagens dos livros de Ellroy, e de igual maneira desperdiça-se o coeso elenco de apoio, que vai de Forest Whitaker a Hugh Laurie, passando por Chris Evans e Jaime FitzSimons. Ao termo de 109 minutos, “Os Reis da Rua” é uma simplória brincadeira metalinguística, acenando a “007” e “Duro de Matar”. De longe.


Filme: Os Reis da Rua
Direção: David Ayer
Ano: 2008
Gêneros: Thriller/Drama/Crime/Ação
Nota: 7/10