De tirar o fôlego, suspense psicológico na Netflix vai te deixar sem chão e te perturbar por semanas Murray Close / Netflix

De tirar o fôlego, suspense psicológico na Netflix vai te deixar sem chão e te perturbar por semanas

Traumas de um passado que insiste em não passar e tornam-se parte da vida de alguém tendem a dar em bons filmes. Não é exatamente simples fazer com que o público goste de narrativas propositalmente intrincadas, que não se resolvem em uma ou duas sequências, liberando a história para o conflito seguinte, como uma linha de montagem que não pode se dar o luxo de perder o que quer que seja, nem a menor rebarba, sob pena de, ao fim do expediente, a conta não fechar e pescoços serem levados ao cadafalso. “Pássaro do Oriente” não se furta a desempenhar esse papel, a do filme-enigma, o que, por óbvio, entedia, aborrece, desgasta, abespinha boa parte dos espectadores, mormente em tempos de uma facilidade ilusória, em que todas as situações, mesmo as fictícias, têm de se resolver a toque de caixa, ou que arque com as consequências de ferir as suscetibilidades de gente que se recusa a crescer e a lidar com as inúmeras frustrações que a vida, essa pândega, lança-nos ao rosto todo santo dia, sejamos ou não capazes de tirar-lhes o pesado véu.

Adaptado do romance “Delito Sem Provas”, de Susanna Jones, o filme de Wash Westmoreland, lançado em 2019, encontra no material de origem, publicado no Brasil dezoito anos antes pela Editorial Presença, um manancial de boas referências e, ainda assim, declara a louvável ousadia de propor arcos não totalmente explorados pela autora, talvez por alguma justa razão mercadológica de fazê-lo no produto cinematográfico. E este é exatamente o pulo do gato aqui: decerto o leitor compreende que, por mais que um escritor se empenhe, nunca há de conseguir fazer quem o lê ter a precisa dimensão do que terá querido transmitir. Na verdade, o registro de uma trama inicialmente vertida em livro para filme também não é garantia alguma de que saia tudo conforme o artista concebeu idealmente, mas só o fato de se ter diante de si algo pouco mais palpável que a evanescente imaginação já consola, quiçá até o próprio dono do enredo original, que, a depender do talento do diretor, pode terminar se convencendo de que era aquilo mesmo que pretendia comunicar. As teorias de Peter Burke sobre a convergência de mídias nunca foram tão certeiras, ao menos no que respeita a estabelecer uma ponta razoavelmente sólida entre um veículo mais antigo e outro cuja modernidade e constante modernização são sua razão de ser essencial. “Pássaro do Oriente” tem o condão de, a um só tempo, manter a fidelidade ao texto corrido e se constituir um exemplo cabal do que pode o cinema ao flertar com a literatura. 

O roteiro do próprio Westmoreland investe — ou talvez o verbo que melhor se adequa a suas pretensões seja “apostar” — no mistério, deixando de lado a narrativa de Jones para assumir seu próprio ponto de vista sobre o que absorveu do trabalho da romancista. O drama de “Delito Sem Provas” cede lugar à tensão incessante defendida pelo longa, contudo (e, uma vez mais, a delicadeza das intenções é determinante) nem sempre: há momentos de anticlímax emocionais, até pegajosos, na abordagem do diretor que fisgam a audiência por se confessarem puramente instintivos. Ao passo que o suspense necessita de elaboração, de frieza, de cálculo, de método, a condução de um eixo narrativo tomando por guia a análise de reações comoventes é uma habilidade sensorial por excelência e, possivelmente por esse motivo, tão mais complexa. E de nada valeria tamanha dedicação sem atores que proporcionassem segurança a um filme tão perigosamente denso.

“Pássaro do Oriente” poderia se resumir à presença cada vez mais magníloqua de Alicia Vikander. Sua autoexpatriada Lucy Fly, uma sueca que vai parar em Tóquio depois de uma sucessão de tragédias pessoais consegue se ombrear com suas personagens anteriores, célebres pela alta octanagem dramática. No filme de Westmoreland, Vikander está tão bem quanto em “Ex_Machina: Instinto Artificial” (2015) — e ela só não está melhor no longa de Alex Garland porque aparece muito menos do que o desejável — e seu desempenho como Lucy Fly se compara à Gerda Wegener de “A Garota Dinamarquesa” (2015), dirigido por Tom Hooper, papel pelo qual ganhou, com todo o mérito, o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante. No ofício de tradutora, é evidente a inadequação da protagonista a uma cultura que a faz parecer pouco mais cômoda que um peixe fora d’água, e claro que a violência de tais inquietações se derrama em sua vida pessoal, primeiro no romance com Teiji, de Naoki Kobayashi, com quem nunca consegue estabelecer vínculos realmente profundos. Não muito tempo depois, a lancinante fragilidade espiritual de Lucy abre a guarda para que outros parasitas infestem-lhe a alma e adoeçam também seu corpo, como a dissimulada Lily Bridges de Riley Keough, cuja trajetória de ex-enfermeira nos Estados Unidos a bartender na capital do Japão se assemelha a da personagem central. Westmoreland mais uma vez se arrisca, mas quebra a banca centrando as fichas pretas no talento de Keough, em cuja figura acintosamente dialética o filme passa a mirar. Lucy se vê implicada num sem fim de circunstâncias esdrúxulas em que Lily ganha destaque, crescendo a pouco e pouco na história ambientada na década de 1980, enquanto a protagonista lhe fornece o aporte necessário até o epílogo — que deixa quase tudo por ser devidamente aclamado.

O suspense dramático do filme não é para todos, e essa é sua principal qualidade e seu maior defeito. Westmoreland parece ter ojeriza a tornar mais desembaraçada a vida de quem assiste a “Pássaro do Oriente”, e entende a visão de mundo de Lucy Fly, alguém com um gosto todo especial e autodestrutivo por estar sempre a se perder. Ao cabo de 107 minutos, só resta torcer para se ouvir o canto da ave misteriosa depois que a terra treme.


Filme: Pássaro do Oriente
Direção: Wash Westmoreland
Ano: 2019
Gêneros: Drama/Mistério/Romance
Nota: 9/10