Pior que inteligência artificial: novo filme da Netflix explora previsões futuristas ainda mais sombrias Andrej Vasilenko / Netflix

Pior que inteligência artificial: novo filme da Netflix explora previsões futuristas ainda mais sombrias

Acaba de romper uma era em que o ser humano, a mais desditada das espécies da Criação, caminha a passos largos para a obsolescência, processo que só tomou a fatídica dimensão que se vê graças ao menoscabo do homem com sua própria natureza, a sua ganância sem limites, a sua preguiça invencível. “Paraíso”, uma distopia pré-apocalíptica feita de críticas tão sutis como ferozes acerca de como nos perdemos de nossa essência, de nossa humanidade, do que nos define como indivíduos dotados de raciocínio lógico, claro, mas também de sentimento, de reflexão, das dores que sangram e fortalecem, com a nossa aquiescência e, o pior, com a nossa dedicação a causas sem fundamento. Boris Kunz leva o espectador a acreditar-se como peça mais importante de uma engrenagem complexa, azeitada por um elemento cada vez mais precioso, que não se materializa nunca, e, assim mesmo, desperta a cobiça de qualquer um. No filme de Kunz, essa relíquia pode ser adquirida por quem consiga pagar por ela, e encarna a diferença entre felicidade e agonia, vida e morte.

Na Berlim de um futuro próximo, será possível que alguém jamais envelheça — desde que tenha dinheiro o bastante para arcar com os custos do procedimento e consiga quem lhe ofereça os anos que pretende retroceder. O texto do diretor, assinado junto com outros três roteiristas, instila um desconforto em quem assiste ao evitar aludir à figura do dinheiro e usar sempre a palavra “doação”, a primeira das grandes ironias de Kunz. A segunda continua remetendo ao vil metal, porém de forma mais direta e mais contundente: as sequências de DNA mais visadas por ricaços ávidos por aproveitar a estada na Terra até a última gota encontram-se justamente entre os mais pobres. A Aeon, uma start-up de biotecnologia que investiu bilhões de dólares nos estudos que possibilitaram a magnífica descoberta, é presidida por Sophie Theissen, a personagem de Iris Berben, uma mulher atraente, sedutora, diabolicamente persuasiva e que ainda não encontrou ninguém que disponha de um código genético compatível com o seu. Paralelamente às sequências que descrevem o expediente da Aeon, o filme expõe a rotina do casal Max, interpretado por Kostja Ullmann, e Elena, vivida por Marlene Tanzcik, às voltas com os apuros prosaicos de um casamento feliz. Uma reviravolta desaba sobre a vida de Max e Elena, e a felicidade já não os contempla; Kunz encaminha a narrativa para um segundo ato que esconde as desagradáveis surpresas para os dois, visceralmente ligadas à Aeon, Theissen e um salto de quarenta anos no tempo de vida de Elena, por seu turno desafiada pela culpa de um infortúnio que não provocou e tampouco merecia. Neste paraíso, tal como a novilíngua de Orwell, prazer é martírio, e Céu é inferno.


Filme: Paraíso
Direção: Boris Kunz
Ano: 2023
Gênero: Ação/Ficção científica/Suspense
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.