Drama aclamado de Almodóvar é obra-prima na Netflix que você precisa ver o mais rápido possível! Manolo Pavón / El Deseo

Drama aclamado de Almodóvar é obra-prima na Netflix que você precisa ver o mais rápido possível!

Pedro Almodóvar nunca foi exatamente um modelo de normalidade, ao menos no que tange a seu ofício, o de registrar as dores e glórias dos protagonistas de suas tramas, cuja essência não tem outro berço senão a inesgotável fonte da vida real. “Julieta” insiste num dos temas favoritos de Almodóvar, o diretor espanhol mais prestigiado e relevante desde Luis Buñuel (1900-1983) e Carlos Saura (1932-2023), que por sua vez também nutriam suas obsessões. Conscientemente ou não, Almodóvar verte em seu obra o elemento denunciatório de Buñuel, conhecido pelo incômodo e pela agudeza de espírito com que revirava a hipocrisia e a miséria existencial do homem, como se assiste em “O Discreto Charme da Burguesia” (1972) e “Um Cão Andaluz” (1929), e a fixação de Saura por mulheres, suas paranoias e sua violência quase silenciosa, ângulos que despontam em “Carmen” (1983) e “Cría Cuervos” (1976). “Julieta” figura como uma interseção temporal na produção dos dois mestres, onde Almodóvar sela com seu próprio timbre as histórias aterradoras, esfuziantes e sempre meio fantásticas que resolve contar.

Em “Julieta”, a natureza autorreferente de Almodóvar dá lugar à percepção de Alice Munro, a autora em cuja pena o diretor baseia o enredo, a partir de três narrativas da contista canadense. Um dos filmes mais sofisticados do espanhol, é tarefa inglória tentar encontrar em “Julieta” os laços estreitos que o pudessem ligar a “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” (1988) ou “Ata-me!” (1989), por exemplo, nos quais Almodóvar é mais Almodóvar e escancara as feridas dos relacionamentos íntimos que só mesmo ele pode ver, malgrado esteja tudo lá, principiando, claro, pelas situações entre ordinárias e absurdas a envolver personagens femininas. Neste trabalho, cheio de pormenores exagerados a uma análise descomprometida, a interpretação do diretor para os textos de Munro vai e volta sem que se saiba bem o que ele pretende, ardil que só robustece a escalada de surpresas que culmina com um desfecho avassalador em sua limpidez. 

As digitais de Almodóvar vão se avultando em sequências como na introdução, quando a câmera flagra a escultura de um demônio cujo falo mira ameaçador o público. A personagem-título, vivida por uma Emma Suárez cada vez mais dona do filme, encaixota livros e pela conversa que mantém com Lorenzo, quiçá o namorado recente, interpretado por Darío Grandinetti em bons momentos espaçados no transcorrer de 99 minutos, conclui-se logo que deseja fugir, de alguém ou de si mesma. O diretor capta à perfeição a inconstância da protagonista, muito bem delineada na prosa de Munro, e um longo flashback, passado num trem, aparta sua vontade anterior da necessidade de ficar de agora; de não mais deixar Madri por Lisboa; de preservar os livros exatamente como estão, até que uma nova virada a mostra sôfrega por mudar de bairro, sem Lorenzo, sem ninguém. Almodóvar volta ao trem, onde, afinal, fica-se sabendo o porquê dessa sua busca aparentemente sem fundamento; é quando concentra-se, enfim, em Julieta e em seu passado, que valida o filme, tomado quase todo pelo envolvimento amoroso com Xoan, o pescador mulherengo e algo sibilino de Daniel Grao.

Ao assumir o papel da Julieta moça, Adriana Ugarte dá ainda mais substância a um enredo já denso por natureza; é justamente desse respaldo de Ugarte que Almodóvar se vale para chegar ao cerne do que propõe e do que quase defende numa história sobre o peso, o significado e o mérito das escolhas, e das perversões colossais das famílias, que por seu turno remontam à felicidade impossível do homem. E, principalmente, da mulher.


Filme: Julieta
Direção: Pedro Almodóvar
Ano: 2016
Gênero: Drama/Romance
Nota: 9/10