Você não assistiu, mas deveria: filme da Netflix conta a história do anarquismo Divulgação / Netflix

Você não assistiu, mas deveria: filme da Netflix conta a história do anarquismo

Viver em conjunto traz consigo uma incessante batalha entre concepções de certo e errado, um duelo que frequentemente adota uma visão maniqueísta, simplista e carregada de preconceitos, que infelizmente tende a concluir que o lado negativo prevalece sobre o positivo. A capacidade de realmente entender o próximo sem reservas, sem medo de parecer vulnerável, e oferecer um gesto de bondade a quem está sofrendo, em vez de apenas priorizar suas próprias convicções e a ambição de controlar, demanda de nós um sacrifício monumental. É como se estivéssemos embarcando em uma viagem para uma dimensão alternativa, onde o que para nós é absurdo, lá é o cotidiano. É nestes momentos que se revela a complexidade do convívio humano, repleto de incontáveis questões e desafios, dos quais muitos nunca conseguem se desvencilhar, seja por incapacidade ou falta de vontade em confrontar as fontes de tanta dor e desespero, muitas vezes ocultas nas profundezas mais obscuras do ser. 

Inspirada pelos ideais da Revolução Francesa, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada em 1948, representou um marco na aspiração por entender os desejos mais profundos do ser humano. Com a sua difusão, nações ao redor do globo começaram a perceber a importância do respeito às diferenças, uma atitude antes vista como mera cortesia dos poderosos para com os menos favorecidos. Emergiram, então, questões extremamente sensíveis, ligadas às práticas e tradições enraizadas em diversas culturas, permeadas por uma arena política onde figuras sem escrúpulos manipulam as regras do jogo sem pudor. Javier Ruíz Caldera explora uma das lacunas mais sentidas na condição humana em seu filme recente. Em uma era onde utopias parecem extintas, o cineasta espanhol apresenta “Um Homem de Ação”, uma narrativa que, embora ancorada na exaltação de uma figura emblemática do anarquismo espanhol da segunda metade do século XX, constitui um relato crucial de um período conturbado na história da Espanha. 

Lucio Urtubia, figura emblemática de sonhos e ideais, é retratado com nuances quase cinematográficas no roteiro de Patxi Amezcua. Desde sua partida da Espanha sob a ditadura de Francisco Franco em 1962 até seu exílio na Bolívia, Urtubia trilhou um caminho de desafios e aprendizados, abraçando a luta operária e percorrendo as vias tortuosas das ilusões perdidas. Sua vida foi marcada por amores, risos e lágrimas e não foi fácil. Caldera, com habilidade, traduz em imagens cheias de lirismo a extensa pesquisa de Amezcua sobre Urtubia, um personagem quase esquecido exceto por círculos limitados e poetas marginais. As cenas de assaltos bancários conduzidas por Urtubia e seus companheiros anarquistas refletem um realismo que captura a essência dos tumultuados anos 1960 na Europa e França, revelando detalhes como o francês imperfeito de Urtubia, que adicionam camadas de autenticidade ao filme. Urtubia viveu movido pela crença em uma causa, mesmo que isto significasse enfrentar desafios intransponíveis. 

A relação de Urtubia com Anne, interpretada por Liah O’Prey, e sua vida familiar são tocadas de forma mais superficial em meio aos retratos mais idealizados do protagonista. “Um Homem de Ação”, portanto, desdobra-se como a história de um homem embrenhado em suas paixões, que frequentemente mordia mais do que podia mastigar, mas mantinha-se pragmático quando necessário. Diferente de Che Guevara, com quem teve um encontro memorável, este defensor das massas viveu quase noventa anos sem jamais manifestar arrependimento. 


Filme: Um Homem de Ação 
Direção: Javier Ruíz Caldera 
Ano: 2022 
Gênero: Drama 
Nota: 8/10