Você não pode perder: filme de Miranda July na Netflix é a surpresa que você não esperava! Divulgação / Focus Features

Você não pode perder: filme de Miranda July na Netflix é a surpresa que você não esperava!

Chega-se ao mundo sozinho, fica-se sozinho por muito tempo ao longo da vida, e os mais espertos compreendem logo que é preciso uma generosa medida de empenho para se achar as pessoas que valham cada passo da jornada. Os tipos que recheiam “Falsos Milionários”, o drama particularmente sombrio de Miranda July, cavam até encontrar a pepita misturada ao lodo, ainda que nunca haja entre eles um propósito louvável, para nada. Primando pela ambivalência, o texto de July está sempre raspando na hediondez, na repulsa, enquanto também sedimenta tudo com a cola da emoção. A diretora-roteirista exalta a natureza maldita de seus personagens, mas nem só de desespero e loucura vive sua história. Quando anuncia-se o risco palpável de que o núcleo central se desintegre e a coesão do filme vá a pique, um fato novo se anuncia e a mágica começa a acontecer, finalmente.

Existe sempre um componente farsesco nos tantos mínimos detalhes de “Falsos Milionários”, a começar da renitente sensação de que a América é um enorme canteiro, verdejante, florido, bem cuidado, onde tudo funciona à perfeição, mas na primeira cena, depois que um grupo de passageiros embarca no ônibus silencioso da “maior frota de ar limpo do país”, três figuras acima de qualquer suspeita põem em marcha o roubo a uma agência do serviço postal, em plena rua e à luz do dia. Old Dolio, a saborosa anti-heroína vivida por Evan Rachel Wood, aprendeu a escrever assinando falsos pedidos de empréstimo, porém alguma coisa em seu olhar está insistentemente sugerindo o desajuste por meio do qual suas sinapses conflituosas preparam a transformação que não é capaz de imaginar. O universo claustrofóbico de pedestres vigarices engendradas pelos pais, Robert e Theresa, de Richard Jenkins e Debra Winger, começa a sufocá-la, e July dispõe de sequências patéticas, até eminentemente tragicômicas em seu absurdo metafórico e explícito a fim de sustentar a progressiva crise de consciência que se assenhora da personagem. No meio do segundo ato, uma cena em que os três entram numa titânica banheira de hidromassagem junto com o vendedor bonachão interpretado por Adam Bartley, bem-vindo respiro de humor despretensioso, além de Melanie, a trambiqueira sexy encarnada por Gina Rodriguez, é a tradução precisa da inadequação, do desconforto de uma vida baseada em mandracarias, em tergiversações, em respostas dadas no calor da hora e ao sabor das conveniências, sob medida para enfeitiçar o pobre interlocutor. Destarte, ninguém se surpreende com o encerramento, quando, ao fim de um dos vários pequenos terremotos que sacodem Los Angeles com alguma frequência e sem gravidade, Old Dolio digere uma improvável epifania do modo mais apropriado, e torna-se quem é, afinal, ao lado de Melanie, que também se regenera. Até porque uma moça porto-riquenha pode se dar mal por qualquer razão, não importa o que faça — e mesmo que seja bonita como J.Lo.


Filme: Falsos Milionários
Direção: Miranda July
Ano: 2020
Gêneros: Drama/Crime
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.