Humor para inteligentes: filme na Netflix reinventa clássico da literatura em comédia brilhante Divulgação / Universal Pictures

Humor para inteligentes: filme na Netflix reinventa clássico da literatura em comédia brilhante

Hábitos existem para serem contestados, e quanto mais nos aprofundamos na essência oculta de um organismo, mais perto ficamos de descobrir as debilidades que o podem transformar. “A Comédia dos Pecados” alonga-se sobre o terceiro dos dez dias narrados pelo toscano Giovanni Boccaccio (1313-1375) em sua ode ao prazer em detrimento da falsa moral — e, principalmente, da moral imposta, afetada —, que acha eco perfeito em dadas convenções e em certos modelos de comportamento, que, falsos, não podem resistir ao escrutínio da própria natureza. O “Decamerão” de Jeff Baena reafirma o desabuso do original, publicado há 670 anos, ao passo que encontra margem para assumir opções de estilo com que Boccaccio decerto estaria de pleno acordo, quiçá até afrontado por uma ponta de inveja. Em seu texto, Baena, um especialista em cascavilhar o mais íntimo do homem, mas também o que pode ter de mais escrachado, alterna sátira e uma forma muito sua de poesia, exaltando os sentimentos malditos, sem prejuízo de uma louvação muito particular da coragem e do amor sob quase todas as formas.

Na Garfagnana de 1347, uma jovem freira conduz uma mula serra abaixo num medievo em que o obscurantismo e o tédio são amaciados pela harmonia bucólica da paisagem. Ao cravo e ao acordeão executados maviosamente, regalo da trilha de Dan Romer, juntam-se as cores e os tons da fotografia de Quyen Tran, bem-vinda lembrança renascentista, e Fernanda, a soror vivida por Aubrey Plaza, regressa, depois da longa introdução, à abadia onde se enclausura. Figurinos e cenários de época tornam-se uma redundância cada vez mais necessária, já que lançando mão de uma estética “Monty Python”, o diretor-roteirista põe na boca de seus personagens um léxico contemporâneo, com direito a gírias e palavras de baixo calão, também lembrando muito o nosso Gregório de Matos (1636-1696), passados trezentos anos. Pouco depois que repõe a alimária ao estábulo, Fernanda começa seus afazeres, junto com as outras irmãs moças do convento, e quando passa o jardineiro Lurco, de Paul Weitz, Alessandra, interpretada por Alison Brie, e Ginevra, papel de Kate Micucci, investem contra o infeliz, acusando-o de molestá-las e escarnecendo de sua pretensa origem hebraica. Um dos acintes que quase passam ao abrigo da indignação da plateia, que espera, claro, pelo escândalo sexual a que Boccaccio atirara as três freiras num tempo em que decoro era bem mais que retórica.

O argumento central da farsa dos vícios da carne proposta pelas aparitmeses boccaccianas completa-se com a vinda de Massetto, um afilhado do padre Tommasso vivido por John C. Reilly numa participação acanhada, mas brilhante. Baena explica o porquê da entrada do anti-herói em cena recorrendo a clichês de que o poeta fez uso no século 14, muito mais poderosos naquele tempo. Dave Franco encarna o garanhão arrependido, belo e estulto, que alimenta as fogueiras que logo não poderá mais apagar, e como Alessandra, Fernanda e Ginevra não lhe dão paz, o serviço como novo encarregado do jardim se acumula a ponto de exigir a dupla interferência de Marea, a abadessa superiora, com Molly Shannon num equilíbrio cartesiano entre a parcimônia e o humor rasgado, mas sempre despertando uma emoção qualquer.

O desfecho corrobora o mais do mesmo já  visto em produções tão sublimes quanto esquecidas como “O Violinista que Veio do Mar” (2004), dirigido por Charles Dance, ou “O Estranho que Nós Amamos” (1971), levado à tela por Don Siegel (1912-1991), e redivivo por Sofia Coppola em 2017. A peste negra, conjuntura histórica que obriga os verdadeiros protagonistas de “Decamerão” a enfurnar-se num castelo nas imediações de Florença num esforço pela sobrevivência, não entra em “A Comédia dos Pecados”, cedendo este lugar à concupiscência que se alastra entre as freiras e o jardineiro infiel, num lembrete de que o desejo também ultraja, escraviza, adoece e mata. Como Nelson Rodrigues (1912-1980), Boccaccio era, em verdade, um pudico.


Filme: A Comédia dos Pecados
Direção: Jeff Baena
Ano: 2017
Gêneros: Comédia/Romance
Nota: 9/10