Último dia para assistir na Netflix ao filme, ganhador do Oscar, que conta a história de Freddie Mercury Alex Bailey / 20th Century Fox

Último dia para assistir na Netflix ao filme, ganhador do Oscar, que conta a história de Freddie Mercury

Freddie Mercury (1946-1991) pode ter sido o mais incompreendido dos astros da música internacional, e olha que o páreo é renhido! Janis Joplin (1943-1970), Marvin Gaye (1939-1984), Amy Winehouse (1983-2011) encabeçam a triste relação de artistas abatidos no auge por tragédias pessoais que, é forçoso dizer, poderiam ter sido evitadas — e o pior, se estendem ao longo das décadas. Gaye e Mercury escaparam da dita maldição dos 27 anos, que acometeu Joplin e Winehouse, duas mulheres brancas que passariam por negras aos olhos do incauto que nunca as visse na televisão ou comparecesse a um de seus shows apoteóticos. Gaye foi um negro de pele escura de Washington que experimentou desde cedo a devastação de um lar sem amor, complementada pela segregação racial em franca marcha nos Estados Unidos entre os anos 1950 e 1980, cenário que encarou corajosamente; e Mercury, um africano branco de Zanzibar, arquipélago perdido na Tanzânia, na porção oriental do continente, sem saber ao certo quem era, ávido por encontrar um lugar para chamar de seu no mundo, e quando conquistou enfim não só um lugar, mas o mundo inteiro, não soube o que fazer com ele. E não soube o que fazer de si mesmo nesse mundo.

Num tempo em que ninguém tivera ainda a nefasta ideia de inventar o politicamente correto, Freddie levava, mas também batia sempre que confrontado com o segredo de polichinelo de sua homossexualidade. Rodeado de heterossexuais que o tinham como um amigo, a começar dos membros de sua banda, o Queen — o guitarrista Brian May, vivido por Gwilym Lee; o baterista Roger Taylor, interpretado por Ben Hardy, e o baixista John Deacon, de Joseph Mazzello —, malgrado se sentissem notoriamente incomodados diante de seus arroubos queer, o maior band leader da história era um exilado em sua própria vida, na vida que escolhera ter, se é que isso é possível, mas deixava o cárcere de quando em quando, malgrado a horas mortas e com propósitos nada edificantes. Nesse particular, vem a lume oportunas discussões acerca do quão dependente do certificado de straight friendly o vocalista do Queen se tornou ao longo da carreira, uma das mais bem-sucedidas de que se tem registro, justamente por ser flagrantemente linear, sem muitos altos e baixos, sucessos estrondosos ou malogros retumbantes. Salvo a performance gloriosa do Queen no Live Aid em 1985, evento que contou com a participação de artistas de renome a fim de arrecadar fundos para erradicar a fome na Etiópia. Pouco mais de dois anos depois, o próprio Freddie Mercury começava a travar a maior batalha de sua vida, ao ser diagnosticado portador de HIV/aids.

O roteiro de Anthony McCarten escolhe justamente o concerto do Queen, de que o cantor se desligou em 1986, para relativizar o drama do astro. Aparecendo duas vezes ao longo de “Bohemian Rhapsody” (2018), de Bryan Singer e Dexter Fletcher, no início e no desfecho, as sequências da multidão composta de 72 mil almas cantando “Love Of My Life” e “We Are The Champions”, são de fato tocantes e levam os mais sensíveis as lágrimas. O Live Aid foi transmitido para mais de cem países, arregimentou cerca de dois bilhões de espectadores e juntou donativos na ordem dos 150 milhões de libras, e consagrou Freddie Mercury de uma vez por todas como a grande estrela que sempre fora, mas também preocupada com questões sociais. McCarten, Singer e Fletcher — o fato de o filme dispor de dois diretores, o oficial, Singer, demitido por “comportamento errático” (leia-se absenteísmo, ou vadiagem mesmo), e Fletcher, que segurou as pontas depois da hecatombe — dão a entender que a consagração do líder do Queen teria de alguma forma amenizado o martírio de Mercury, o que, ampliando-se o prisma na direção contrária, mas sempre em consonância com a lógica, permite que cretinos infiram que ele tenha tido a culpa por seu flagelo. Estranhamente, Fletcher foi o escolhido para comandar “Rocketman” (2019), musical livremente inspirado (e bota “livremente” nisso!)  na vida do britânico Elton John, inclusive quando ele era apenas Reginald Kenneth Dwight.

Cinebiografias tendem naturalmente para o exagero, para a caricatura, e “Bohemian Rhapsody” não é diferente. Mostrando Farrokh Bulsara — a versão anônima e sem o glamour dos grandes espetáculos de Freddie Mercury — desde os tempos em que frequentava um pub insalubre no subúrbio de Londres por ter gostado do som da banda que se apresentava no lugar, o trabalho de Fletcher tem imprecisões que mesmo a atuação mediúnica de Rami Malek, o grande achado do filme, não cobre. Nota-se o empenho hercúleo do intérprete refinado, atento para as diversas nuances de temperamento do performático Freddie Mercury — performático na vida real, inclusive —, cada vez mais distante da persona do garoto tímido, um tanto feioso, filho de Jer e Bomi, uma dona de casa e um operador de caixa. O encontro com May, Taylor e Deacon na EMI dirigida por Ray Foster, de um Mike Myers canastríssimo, vale pela licença poética, especialmente da parte da interpretação sempre delicada e respeitosa de Malek, cada vez melhor em dar vida a figuras estranhas, como se depreende desde o psicopata de “Buster’s Mal Heart” (2016), levado à tela por Sarah Adina Smith. O chilique de Foster ao ouvir a demo de “Bohemian Rhapsody”, a canção que dá nome ao longa lançada em 31 de outubro de 1975, é sintomático da miopia de certos homens do show business, os negócios que envolvem artes, artistas e seus simulacros, incurável mesmo com o sucesso financeiro dos verdadeiros gênios.

Perfazendo a trajetória da lenda por trás do Queen, o diretor introduz a figura de Mary Austin, e por um instante, o público se deixa levar pela ilusão de que “Bohemian Rhapsody” terá, afinal, algum romance. A personagem de Lucy Boynton, por quem Mercury se dizia sinceramente apaixonado — e por mais que o enredo queira fazer a audiência crer que os dois consumaram mesmo esse amor, resta sempre o travo do interesse de parte a parte, quiçá amenizado pelo argumento da paixão platônica dele para com ela —, é precisamente quem fala pela primeira vez ao marido acerca de sua possível homossexualidade. Enquanto isso, o protagonista continua a se debater com seus fantasmas interiores, e louve-se mais uma vez a força da performance de Malek, ganhador do Oscar de Melhor Ator pelo papel, mesmo quando desabridamente inclinado a aceitar o convite tácito de um motorista de caminhão no banheiro de um posto de gasolina. Incensando o biografado e cedendo a tentações hagiográficas, a tela se apaga num fade out e nunca se sabe ao certo o que pode ter acontecido entre os dois. Isso era ser um homem gay nos Estados Unidos ou em qualquer outra parte do globo ao longo dos falsamente libertários anos 1970, quando nem a promessa de um amor verdadeiro, sem máscaras, intenso, como o que Mercury poderia ter vivido com Jim, de Aaron McCusker, o garçom que serviu na festa à fantasia dada por ele no início do filme, se esvai num sopro, para sempre.

Ficam para a eternidade também a intenção de Dexter Fletcher de discutir a sexualidade como motor de transformação social — ao menos no que se refere ao tempo em que Freddie Mercury viveu — e o pouco traquejo que daí advém, um bloqueio contra o qual lutou a vida toda. Li certa feita que Mercury, depois do carrossel de fogo da carreira artística, de que nunca se pode sair sem alguma chamuscadura, por mais inofensiva que pareça, toparia deixar tudo para ser um bom dono de casa para o marido que o quisesse. Infelizmente, o líder do Queen não teve a sorte do homem do foguete, que continua de pé.


Filme: Bohemian Rhapsody
Direção: Bryan Singer e Dexter Fletcher
Ano: 2018
Gêneros: Musical/Drama
Nota: 8/10