121 minutos de arrepiar: o filme perturbador da Netflix que vai te deixar sem dormir Divulgação / Netflix

121 minutos de arrepiar: o filme perturbador da Netflix que vai te deixar sem dormir

É difícil resistir à tentação de emitir juízos de valor pré-concebidos sobre qualquer assunto, mas a sensação de conseguir furar a bolha do óbvio do que sempre esperamos acerca de tudo supera esse prazer original. Existem aspectos incômodos em “Legado nos Ossos”, sem dúvida, no que toca à forma e ao conteúdo, mas a direção prudente do espanhol Fernando González Molina põe tudo nos lugares devidos. A abordagem rigorosa de Molina para os fenômenos paranormais e as cerimônias em glorificação e clamor às forças ocultas parecem, sim, uma manobra apelativa e gratuita — já presente no livro de igual nome de Dolores Redondo e que ele apenas replica, que se destaque —, mas o diretor é expedito o bastante para refutar polêmicas desnecessárias e canalizar a energia de seu trabalho no suspense magnético que domina a narrativa até a conclusão.

Em 1611, chega a Navarra, um antigo reino medieval no extremo norte da Espanha, o inquisidor Alonso de Salazar y Frías, enviado à região a fim de investigar a veracidade dos acontecimentos obscuros que ali se passavam. Ao cabo de meses de averiguações, o sacerdote comprovou que os habitantes daquele lugarejo esquecido, desprezado pelas autoridades e zeloso de suas próprias leis, estavam dispostos a tudo para manter a salvo suas crenças, tão macabras como antigas. Ainda no âmbito de uma época e um território já perdidos na bruma corrosiva do tempo, Molina lança mão de poderosos elementos visuais a exemplo de uma tempestade de neve que não cessa jamais, potentes na fotografia suave e bem-cuidada de Xavi Giménez, para mostrar o nascimento de uma criança, princípio da maldição que o roteiro minucioso de Luiso Berdejo vai tornando mais clara.

A história salta para os dias atuais, em Pamplona, capital da mesma Navarra, onde no tribunal da cidade numa mulher grávida assiste a um julgamento. Trata-se da inspetora Amaia Salazar, a mocinha da trilogia começada com “O Guardião Invisível” (2017) e estendida para “Oferenda à Tempestade” (2020), também de Molina, à frente de um caso que dá pistas desconexas, mas sólidas, dos crimes bárbaros de quatro séculos atrás, que voltam à carga dispondo de facilidades tecnológicas que favorecem o assassino, uma vez que a polícia tem sempre de se conformar com aparelhos sucateados e o estrangulamento orçamentário. O que parece funcionar muito bem mesmo é a equipe, coesa, e Amaia, na pele de uma Marta Etura num ótimo momento, comanda a operação com mão de ferro, compondo uma parceria invencível com o investigador Jonan Etxaide, interpretado por Nenê.

O filme começa a ganhar identidade quando os dois são mandados a uma diligência em que o padre Sarasola, de Imanol Arias, que havia formalizado uma queixa de vandalismo, mas, o problema, na verdade, demanda outras providências. Alguém depositou ossos humanos no altar da igreja de San Juan de Arizcun, e enquanto Amaia e Etxaide preparam-se para a investigação mais árdua de suas carreiras, o enredo vai se deslindando em torno de discussões estimulantes sobre o ódio à igreja — e o ódio à igreja fundado em conceitos distorcidos —, o que há de sério e de mera bazófia em temas como possessão diabólica e o poder do mal sobre a natureza humana, e que influência pode exercer na personalidade de alguém a boa educação na primeira infância e o amor materno. Esse último tópico é, de fato, o que define o eixo de “Legado nos Ossos” e justifica o terceiro volume da sequência.


Filme: Legado nos Ossos
Direção: Fernando González Molina
Ano: 2019
Gêneros: Crime/Suspense/Terror psicológico
Nota: 8/10