Desconcertante e cerebral, filme argentino, na Netflix, vai te agonizar por semanas Divulgação / Campo Cine

Desconcertante e cerebral, filme argentino, na Netflix, vai te agonizar por semanas

A longa sequência de abertura de “Uma Espécie de Família” é só um indício, talvez o mais evidente e o mais simbólico, do quão perdida está Malena. Diego Lerman não entra no mérito sobre se as possíveis fustigações emocionais, conjugais e éticas de Malena — que se vão provar verídicas — têm o condão de justificar as atitudes tresloucadas que a médica passa a incorporar a sua nova vida, o que acaba por se constituir um estimulante jogo partilhado entre o diretor, a personagem da espanhola Bárbara Lennie, o público e uma quarta parte, que ganha cada vez mais força conforme Malena se desintegra sem pudor. Enquanto isso, Lerman vai apostando na excelência sutil de elementos técnicos como a fotografia de Wojciech Staron, nos enquadramentos acrobáticos da montagem, a cargo de Alejandro Brodersohn, e da trilha, a princípio tímida, mas que não tarda a seduzir, mágica que ganha vida pelo talento de Caio Mariano. Este é um filme em que, como poucos, a maneira como se conta a história interfere diretamente na história em si, ora amenizando-a, ora fazendo com que fique irreversivelmente trágica.

O tema da falta de lugar no mundo, já desmembrado por Lerman com rara argúcia em “Refugiado” (2014), volta do jeito mais metafórico e mais íntimo neste drama a um só tempo entre misterioso e bastante óbvio. Malena vence o temporal que a desafia nas primeiras cenas e chega a Misiones, uma província no nordeste argentino, na fronteira com o Brasil. Não se sabe de onde exatamente ela vem, mas seus propósitos tornam-se mais límpidos a cada quadro, e se tem aí o primeiro grande conflito do roteiro, do diretor e María Meira. Lennie tira de letra qualquer dificuldade quanto a fazer com que o espectador a encare sempre como uma mulher, nada mais que uma mulher, nunca como uma médica que estaria embrenhando-se num cafundó daqueles com intenções filantrópicas ou humanitárias. Malena chega ao único hospital das redondezas para se encontrar com uma moradora local pouco mais velha que ela, prestes a dar à luz seu terceiro filho.

A afinação entre Lerman e o elenco é capaz de virar o eixo da trama e a entrada de Yanina Avila como Marcela passa a definir de uma vez por todas o que o diretor pretende com o filme. Avila, até então uma atriz desconhecida, incorpora com tal espírito a figura dessa mulher — como Malena também açoitada pela vida, mas por razões diametralmente opostas — que, com todo o respeito, o filme dispensa as participações-relâmpago que se sucedem, entre as quais a de Daniel Aráoz como Costas, o médico que se ocupa da gestação de Marcela, e de Cecilia Mattje na pele de Bladia, a velha enfermeira que aprendeu muito mais com os filhos que com os 45 anos de expediente na precária maternidade do vilarejo. A adoção ilegal do bebê de Marcela por Malena adquire as tintas de uma legítima saga funesta, e seria muita ingenuidade supor que os fatos desenrolar-se-iam de outro modo. Tantas faz a moça que a Justiça argentina acaba tomando parte no caso, interditando legalmente o processo.

Perspicaz, o diretor aproveita a imagem do apocalipse que construíra com o esmero para incluir uma das sequências mais potentes do cinema contemporâneo, objetivamente ligada a um fenômeno biológico que de quando em quando atormenta a vida dos produtores agrícolas ao longo de toda a extensão do Pampa. Ainda nesse campo semântico, já na iminência do encerramento, Malena surge à beira da estrada, menos sozinha que no princípio, todavia muito mais desnorteada; essa cena, entretanto, apesar de esteticamente irretocável, perde de longe para o recurso de que lança mão para amarrar todos a pletora de elucubrações filosóficas que foi soltando ao longo de singelos 96 minutos, com Malena, Marcela e o pequeno detalhe que as une e as aparta, diante de uma choupana que parece flutuar no sem fim do universo, cenário perfeito para um encontro dos mais insólitos.


Filme: Uma Espécie de Família
Direção: Diego Lerman
Ano: 2017
Gêneros: Suspense/Drama/Crime
Nota: 9/10