Último dia para assistir na Netflix a um dos mais belos filmes da década Divulgação / Kowalski Films

Último dia para assistir na Netflix a um dos mais belos filmes da década

A inconformidade do homem diante do imponderável da vida não é além que a manifestação mais potente e mais silenciosa do espanto que lhe provoca sua própria condição. Cheia de falhas, atormentada por medos, padecendo de carências que não pode suprir e assolada por misérias que a subjugam e ferem, lembrando-lhe que os poderes todos que julga ter são uma tola ilusão, a alma humana se perde e se encontra no lado mais fundo e bárbaro de suas vastas possibilidades, abrigando uma ideia de redenção ora distante, quiçá escondida em alguma estrela, ora tão próxima que tropeça na vulgaridade do cotidiano, ambiente onde gravitam os sonhos verdadeiramente belos, de progresso, de integração, de continuidade. Alegoria sobre tudo o que pode haver de mistério e luz, obscuridade e revelação na trajetória de um indivíduo e de todos eles, “Handia” opera quase sempre na faixa do que não se deixa ver. Os diretores Aitor Arregi e Jon Garaño usam esse componente, uma espécie de magia que paira um dedo acima da dureza da matéria, mas tão poderosa que determina a fortuna e a desdita dos mortais, indiferente a qualquer outro critério que não seja o do nosso invencível descompasso na Terra.

Arregi e Garaño entram no dia a dia enfaroso, pesado, permeado pelo trabalho duro na lavoura e a necessidade do sonho, sufocada pela urgência de manter-se vivo num pedaço de mundo esquecido desde sempre, mas que desperta o interesse das autoridades frente a um cenário de particular incerteza. Depois de uma breve apresentação dos personagens, com as belas sequências das pradarias do interior do País Basco, entre o norte da Espanha e o sudoeste da França em que a excelente fotografia de Javier Agirre repisa essa aura bucólica da trama, os diretores consideram, acertadamente, começar a explorar a substância dramática do enredo valendo-se do retrospecto histórico. O texto de Arregi e Garaño, escrito com Andoni de Carlos e José Mari Goenaga, prima por conservar esse desvio perene da obviedade, servindo poesia para amenizar o que se segue.

A travessia de uma família ao longo da Primeira Guerra Carlista (1833-1840) é particularmente tormentosa para os Eleizegui. Antonio, vivido por Ramón Agirre, é instado a escolher um dos dois filhos homens para combater nas tropas monarquistas que enfrentam os liberais, comandados por Carlos María Isidro de Borbón (1788-1855). O patriarca opta por Martín, mas não contava que o primogênito, o tipo ambíguo encarnado com devoção por Joseba Usabiaga, voltasse a casa ferido gravemente. Com a força de trabalho da família inutilizada para sempre, eles ficam no limite entre a indignidade e a fome, até Martín convence seu irmão mais novo, Miguel Joaquín, o gigante de Altzo, a se apresentar como uma aberração nos muitos espetáculos do gênero em meados do século 19. O caçula se submete às humilhações dos empresários e à ganância de Martín, enquanto tenta aprender a lidar com esse novo universo, que o fascina e o apavora, e onde todos o veem como um monstro cuja única utilidade é lhes saciar uma curiosidade mórbida e provocar gargalhadas de desprezo.

É difícil resolver quem seria o personagem central de “Handia”. O trabalho de visível carpintaria artística de Usabiaga torna-se ainda mais sofisticado à medida que a performance de Eneko Sagardoy aparece. Sagardoy capta com rara sensibilidade a dor desse homem imenso, de 2,42 metros de altura, frágil como um menino, refém do próprio corpo, que o interdita qualquer chance de plenitude, mesmo as mais fugazes. Sobre o casamento com María, de Aia Kruse, plana sem trégua a ave negra da desconfiança, diretamente proporcional a sua certeza, cada vez mais íntima e mais avassaladora, de que nunca será feliz. O filme de Arregi e Garaño remete o público sem constrangimentos, até de modo intencional, a “O Homem Elefante” (1980), de David Lynch, sobre Joseph Merrick (1862-1890), ou a “Marcas do Destino” (1985), de Peter Bogdanovich (1939-2022), sobre Rocky Dennis (1961-1978), portadores de anomalias cromossômicas congênitas com nomes quase impronunciáveis. Como em Lynch ou Bogdanovich, “Handia” é um registro biográfico que tocar sentimentos que extravasam as moléstias da carne. Um filme sobre um homem adoravelmente comum.


Filme: Handia
Direção: Aitor Arregi e Jon Garaño
Ano: 2017
Gêneros: Drama/Guerra
Nota: 8/10