Última chance para assistir na Netflix a uma das mais belas histórias de amor da literatura

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“Anna Karenina” (ou “Kariênina”, a depender da tradução), do novelista russo Liev Tolstói (1828-1910), é decerto a história de amor mais triste de todos os tempos. O caso fictício entre a protagonista, Anna Kariênina, mulher de Alieksiéi Kariênin, alto comissário do czar Alexandre II, com o Conde Vronsky, oficial da cavalaria, foi um escândalo junto à aristocracia da Rússia imperial. Anna pede o divórcio, faz de tudo para persuadir o marido que agora representa uma barreira a sua felicidade, mas Kariênin, além de não aquiescer, ainda a impede de ver o filho. O casamento, claro, termina mesmo assim, bem como o romance extraconjugal e o fim da anti-heroína é o pior possível. Todas as histórias de amor trazem em seu bojo o signo da tragédia e, se não resvalam para ela, é só porque a nobreza do mais humano dos sentimentos se impõe à barbárie dos instintos. Com variações pontuais, o enredo é sempre o mesmo: duas pessoas se encontram numa dada circunstância da vida, meio misteriosa, partilham sonhos, descobrem interesses em comum, apaixonam-se. Como na vida não há nada que se prove inescapavelmente preciso, sem margem para transformações, ninguém estranha se algum tempo depois fenece todo o sentimento que unira dois indivíduos em tudo diversos um do outro, aparentemente indelével, e o que se anunciava como amor se deixa tragar pelo turbilhão do súbito desinteresse, alimentado por sua vez pela fúria do desejo implacável, que arrefece, mas nunca se apaga.

Não por acaso levado às telas cinco vezes, entre 1935 e 2012 — para não mencionar mais uma, a primeira, de 1927, ainda do cinema mudo, quando o papel da anti-heroína foi defendido por ninguém menos que a diva Greta Garbo (1905-1990) —, o texto de Tolstói tem fôlego para encantar mais centenas de gerações pela eternidade afora graças à perenidade do assunto que compreende, ao poder de alcance da mensagem e, evidentemente, ao estilo do mestre russo. Joe Wright topa o desafio de materializar um dos contos de infidelidade conjugal mais perturbadores da história — ainda que resvale em opções estilísticas esteticamente questionáveis — e faz de sua interpretação de “Anna Karenina”, a última versão do livro para o cinema, um golpe certeiro na montanha de platitudes que a indústria cinematográfica despeja sobre o público de tempos em tempos.

Wright transforma o roteiro de Tom Stoppard num carrossel de aparições vistosas, todas encabeçadas direta ou indiretamente por Keira Knightley, sua protagonista pela terceira vez. Knightley tem bom domínio da personagem, sobretudo na iluminação de Karenina usada pelo diretor na abertura do longa, que como quem já leu uma das obras-primas de Tolstói sabe, remete ao evento funesto que transcorre numa estação ferroviária. Não consigo imaginar o que tenha passado pela cabeça de Wright ao preferir centrar a narrativa num teatro de verdade, um movimento arriscado cujo aspecto meio claustrofóbico não deixa funcionar em plenitude. Também fica no ar o que o diretor pretendera com o trenzinho de brinquedo a permear determinados trechos da narrativa; dou de barato que tenha querido traçar um paralelo qualquer entre o mundo fantasioso habitado pela mocinha e a dureza da vida como ela, remontando, por óbvio, ao modo trágico como se encerra a saga de Karenina. Além de soar como preguiça, o expediente não chega nem perto de expressar a dramaticidade a que o autor quis aludir. A Rússia de fins do século 19 era um lugar pouco afeto a sutilezas dessa ordem, e tanto menos se envolvendo mulheres, ainda hoje abertamente menoscabadas por aquelas bandas.

O trabalho de Wright tem aspectos louváveis. Além do comentado figurino de Jacqueline Durran, que mereceu o Oscar da categoria, as performances masculinas se destacam numa conjuntura pensada para exaltar composições de mulheres. Não poderia haver ninguém melhor que Aaron Taylor-Johnson para encarnar a beleza fria do conde Vronsky, por quem Karenina se apaixona, tenta largar o marido — interpretado aqui por um Jude Law tão adequadamente circunspecto que parece ter ingressado em alguma máquina do tempo e ganhado bons vinte anos —, e leva a pior. O desempenho de Taylor-Johnson ombreia com o de Knightley, muito por causa dos primeiríssimos planos em que seu par de olhos impressionantemente azuis coriscam ao pousar sobre a nova conquista. Como uma fera que hipnotiza sua presa antes de devorá-la, ou um anjo caído que arrasta para a perdição as almas mais vulneráveis.


Filme: Anna Karenina
Direção: Joe Wright
Ano: 2012
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 8/10