O suspense aterrorizante e tenso, disponível na Netflix, que vai obrigar você a dizer para si mesmo: “calma, é apenas um filme” Divulgação / Warner Bros. Pictures

O suspense aterrorizante e tenso, disponível na Netflix, que vai obrigar você a dizer para si mesmo: “calma, é apenas um filme”

É conhecida a anedota que Alfred Hitchcock (1899-1980), um dos pais do suspense no cinema, usara para definir o gênero que o consagrou. Em conversa com ninguém menos que François Truffaut (1932-1984), um dos fundadores da Nouvelle Vague, movimento que revolucionou a sétima arte no século 20, Hitchcock dizia haver uma diferença pontual entre o suspense e a ação, por exemplo. Se um grupo de amigos está sentado à mesa e de repente explode uma bomba, isso é ação; se acaso esses mesmos amigos estão sentados a essa mesma mesa, o espectador sabe que há uma bomba embaixo deles e a narrativa se prolonga no tempo, isso é suspense. “O Orfanato” tem as duas bombas, a que explode de uma vez e a que demora o tempo necessário para apavorar o público. Brincando com o conceito de verdade versus delírio, o diretor Juan Antonio Bayona sequer deixa claro se seu enredo é mesmo uma história de espíritos que não conseguem abandonar o mundo da matéria e rumar para o além, atormentados por gente que também queria ter ido, mas permanece viva, ou nada além de simples alucinação.

O roteiro de Bayona e Sérgio G. Sanchez, escrito em 2008, é uma história de que como o passado interfere na vida de alguém, quase sempre para o mal, mas não sem sua participação direta. Nunca se tem absoluta certeza acerca de coisa alguma, a não ser de que tudo o que acontece se volta imediatamente para eventos que tomaram forma em algum momento, deveriam ter ficado num tempo remoto, mas são sistematicamente lembrados, fazendo com que o ambiente em que se transita adquira a atmosfera mórbida de quem anda por ali. E, dessa maneira, o medo torna-se não um elemento meramente figurativo, sugerido, mas é vivenciado integralmente.

“O Orfanato” se desdobra sobre as obsessões de Laura. A personagem de Belén Rueda fora criada numa casa para menores abandonados boa parte da vida, quando enfim consegue ser adotada. Ao saber que o imóvel está à venda, ela decide comprá-lo e se mudar para lá, a fim de montar seu próprio lar para crianças com doenças graves e limitações físicas ou intelectuais. Laura conhece o orfanato como ninguém: viveu ali anos felizes — e essa é uma pista importante na trama —, mas à medida que amadurece a ideia de se tornar a nova proprietária do estabelecimento, é tomada por uma miríade de pensamentos nefastos. A fixação a respeito do que pode ter acontecido com os demais moradores do casarão quando passara a ter uma família, há mais de quarenta anos, se apossa dela, que passa a ser refém de suas lembranças. Não muito tempo depois, Carlos, o marido vivido por Fernando Cayo, e principalmente Simon, o filho adotivo dos dois, estão tomados pelas mesmas perturbações.

O garoto, interpretado por Roger Príncep — ganhador do Prêmio Goya de Melhor Ator Revelação pelo papel — incorpora a aura de mistério já natural em torno da criança, e tanto pior numa criança como ele. Simon não é um menino como outro qualquer; ao ser obrigado a ter de lidar com condições desfavoráveis desde tenra idade, o filho de Laura e Carlos se mostra receptivo a formas desconhecidas de apreender o mundo, que sua mãe logo reconhece, teme, mas não chega a reprimir. Não é incomum que a solidão infantil, típica em crianças que como ele não convivem com indivíduos da mesma idade, termine por se desdobrar em manifestações paranormais. A invenção de um amigo imaginário, outro dos comportamentos habituais em meninos muito sozinhos, também se reveste de um aspecto aberrativo, não só pelo fato dessa criatura se apresentar com a cabeça coberta por um saco de pano, mas também por Laura identificar na figura uma lembrança apenas sua, que nunca dividira com mais ninguém. Os dois poderiam ter desenvolvido a capacidade de se comunicar por telepatia, mas também não se descarta a hipótese de Simon ser mero fruto da mente desvairada da protagonista, quadro psicótico que se agrava com a visita de Benigna, nome diabolicamente irônico para uma assistente social que não disfarça suas intenções perversas. Coincidência ou não, é depois que a personagem de Montserrat Carulla (1930-2020) entra em cena que se dá a reviravolta central de “O Orfanato”, o que obriga Laura e Carlos a consultarem a vidente Aurora, de Geraldine Chaplin, e o parapsicólogo Leo Bálaban, encarnado por Édgar Vivar (o Seu Barriga do seriado mexicano “Chaves”) a fim de saber o que pode ter acontecido realmente.

O aspecto funesto, realçado pela fotografia de Oscar Faura, dá ao espectador a impressão de se estar preso no elevador de um prédio antigo, que mal consegue absorver o exíguo raio de luz que tenta se infiltrar por uma fresta da porta, quando se grita por socorro e se tem a certeza de que ninguém nos ouve. Dessa maneira poeticamente sombria “O Orfanato” chega ao fim, com um dos desfechos mais intrigantes numa história que parecia só querer dar uns sustinhos.