Premiado e sinistro, suspense psicológico escondido na Netflix é um dos filmes mais assustadores da história do cinema

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Corrente do Mal” não é de muita conversa. O segundo longa do diretor David Robert Mitchell, lançado em 2014, quatro anos depois de sua estreia com “O Mito Americano da Festa do Pijama” (2010), consegue ir tão fundo em seus propósitos justamente por não permitir que o espectador chegue perto demais. Mitchell conta uma história de almas penadas como outra qualquer do gênero, mas aqui a convivência entre estes seres do além-mundo e os vivos não se revela exatamente conflituosa.

A chave para se compreender “Corrente do Mal” é observar seu jovem elenco e que postura os personagens adotam diante dos problemas corriqueiros da vida. O início da experiência sexual, atabalhoadamente e sem muito sentido, degringola na liberação de outros anseios e dos medos que há por trás de cada um deles, a batalha existencial travada por todo indivíduo, apesar de ainda mais inglória nessa fase. O roteiro de Mitchell perpassa o sexo, sem dúvida, porém de nada adianta se ater sobre o que pirralhos fazem por debaixo dos lençóis sem se concentrar na maneira como se colocam no mundo a partir do falso sentimento de liberdade disparado pelo ato sexual, em si já violento — e ainda mais perverso se praticado fortuita e inconsequentemente.

Jay, a garota melancólica vivida por Maika Monroe, se depara com a necessidade de assumir a culpa por suas más escolhas ao ceder às investidas de Hugh, de Jake Weary. Hugh seda a namorada com clorofórmio e a amarra, de calcinha e sutiã, a uma cadeira, contando-lhe que agora ela está contaminada, não por algum vírus que desencadeia uma doença sexualmente transmissível, mas por um espectro, como as DSTs também contagioso pela via sexual. O personagem de Weary aconselha Jay a transmitir a assombração a outra pessoa, ou seja, transar com alguém só para aliviar a carga espiritual que sua nova condição há de implicar; se não o fizer, precisará se acostumar a ser sempre acossada, seja por uma figura conhecida ou não, viva ou morta. Essa manifestação incorpórea só pode ser combatida pela própria Jay, embora surjam amigos interessados em ajudá-la. Caso de Paul, interpretado por Keir Gilchrist, que nutre por ela uma paixão não correspondida e torna a questão ainda mais delicada para a anti-heroína.

“Corrente do Mal” é um dos retratos mais fiéis da adolescência, que se foi alongando na sociedade contemporânea justamente por ser território livre para o cometimento de toda a sorte de barbaridade, uma vez que ser adulto obrigatoriamente redunda em errar, pagar por esses erros e abominá-los. A relação que adolescentes e pós-adolescentes mantêm com o sexo é quase sempre platônica: eles falam muito sobre o tema, mas daí a sair do papel vai uma longa distância, toda pontuada por etapas. Queimada alguma delas, o sexo se impõe de forma avassaladora, trazendo em seu bojo consequências que subjugam a natureza humana, os tais fantasmas do filme. A excitação a que Jay e suas amigas estão entregues, curtindo a vida adoidado, passa pelo crivo psicanalítico de Mitchell, que a toma em sua real medida, sem glamourizá-la nem torná-la um bicho de sete cabeças. Entretanto, não se tem muito claro o que a presença indesejada dessas criaturas desencadeia na psique da protagonista. Suas expectativas a respeito do sexo continuam superestimadas, como se transar fosse algum tipo de revolução interna que quanto mais à margem de padrões, mais poderosa, e quanto mais poderosa, mais capaz de se espraiar para a vida social e influenciar positivamente as pessoas ao seu redor. Mecanismos desenvolvidos pelo cérebro humano a fim de defender a tese de que a idade adulta é tediosa, infestada de gente insensível, que nunca vai reconhecer o gênio que se recusa a crescer, ter responsabilidades, se casar e constituir família — se for o caso. Essas almas perturbadas ainda acabam com o mundo.

A parcela de horror na narrativa de “Corrente do Mal” vem à tona a partir da ideia de que se a vida é efêmera, o sexo seria o expediente mais sensato a se adotar contra esse seu caráter passageiro, ou seja, combater o fogo com querosene. Aos poucos, num coming-of-age suave, Jay vai percebendo que a grande amizade que diz ter por seus amigos não é nada tão especial assim, o que não quer dizer que se precise abdicar deles, radicalmente — e esse é outro paradoxo a que Mitchell se debruça. O componente sexual da trama fica em segundo plano, já que sexo não deve ser mesmo a resposta para coisa alguma, e Jay se fixa numa afirmação de Yara, a amiga vivida por Olivia Luccardi. Presa de uma maldição que a obriga a manter-se numa busca constante por prazer — pela ilusão do prazer, mais precisamente —, Jay reflete, ainda que de uma forma superficial, acerca da persecução a que ela mesma dera azo, uma armadilha em que caíra por sua própria vontade e da qual talvez nunca mais se liberte.

Os enquadramentos usados por Mitchell colaboram para o entendimento da ambivalência de dois conceitos, que se misturam, a onipresença do sexo e sua falsa necessidade, com os personagens reais e os imaginários sempre num mesmo plano. Nas cenas filmadas de dentro dos carros, de Jay ou Paul, o diretor se vale da noção de espaço infinito para inspirar quem assiste a pensar sobre a configuração da existência, um caminho longo, solitário, sem rotas de fuga. As passagens de terror do enredo primam pela inventividade e pelo vigor, mas a sensação de angústia gerada por esses registros claustrofóbicos não é nada desprezível. Se “Corrente do Mal” tivesse uma única mensagem, seria a de que o sexo, a exemplo de qualquer outra escolha, demanda reflexão — e, portanto, maturidade. Trocando em miúdos: sexo é coisa de gente grande.