Comédia dramática que acaba de chegar ao Amazon Prime Video vai mudar a sua forma de encarar a vida

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Há momentos em que transformações precisam ser feitas — ainda que não se saiba muito bem quais ou onde. “Burlesque”, dramédia — neologismo que define o híbrido da narrativa dramática que se amalgama a um texto com lances engraçados — que a diretora Teresa Kopáčová conduz com mão segura, tem o mesmo nome de outro filme, esse protagonizado pelas cantoras Cher e Christina Aguilera, cuja estreia se dera nove anos antes. No trabalho da tcheca Kopáčová, lançado em 2019, a protagonista é a típica antiestrela. Betka é uma professora do ensino médio, gorda e sem muito dinheiro, mas com um talento incomum, especialmente para alguém do seu tamanho: dançar. A vida se revela para Betka como uma cornucópia de provações. Primeiro, é desafiada a se aceitar da forma como é, em tempos de belezas estritamente padronizadas — malgrado seja forçoso reconhecer que o mundo evoluiu muito também nesse campo, vide a publicidade, sempre esperta, agora veicular incontáveis comerciais de televisão que se valem de mulheres obesas, muito magras, negras ou de cabelos crespos divulgando toda sorte de produto —; quando começa a apresentar algum progresso nessa área, passa a sofrer de discriminação com o sinal inverso, ou seja, as pessoas lhe demonstram aversão justamente por ser uma gorda que não conhece o seu lugar, uma gorda autoconfiante.

Hollywood nunca teve muita paciência para patinhos feios, pelo menos para os que seguem satisfeitos com essa sua condição e teimam em nunca virar cisnes. O  “Burlesque” de 2010 evidencia a ascensão de uma jovem cantora cujo único capital é a voz potente, emoldurada por um belo rosto e um corpo escultural, que vai trabalhar como garçonete num teatro decadente chamado The Burlesque Lounge, onde é apresentado um número baseado nesse gênero de espetáculo. O homônimo de 2019 fala da dança burlesca em si, que se caracteriza precisamente pela sua natureza cômica, ridícula, aberrante, o que decerto foi o chamariz definitivo para que Betka se identificasse tanto.

A partir da quebra de paradigmas, o show burlesco, exagerado, fora do convencional, é capaz de mexer com o estabelecido, o que é uma iniciativa sempre louvável, mormente no expediente artístico. Apresentações burlescas têm o condão muito particular de esconder entre mulheres trajando lingeries sensuais, seios fartos à mostra, e usando maquiagem carregada as verdades incômodas da humanidade. Empregando recursos como a paródia e a sátira muito bem absorvidas em piadas de duplo sentido nas quais não raro se espicaçam os políticos e os poderosos de todas as esferas, o burlesco data de pelo menos 130 anos, quando foi popularizado na Inglaterra da rainha Vitória (1819-1901), período em que o Reino Unido foi palco de transformações sociais profundas que o catapultaram a um progresso célere, sem prejuízo das liberdades individuais. O burlesco chegou tão longe que inspirou o compositor e maestro alemão Richard Strauss (1864-1949), autor aos 21 anos de “Burleske em Ré Menor” (1886). A ópera, que rendia homenagem ao gênero, se constituiu numa pletora de enxovalhos dos colegas mais experientes.

Os musicais que retratam personagens inadequadas, quase sempre mulheres, que vencem pelo talento artístico vêm arrebatando público e a crítica especializada ao longo dos anos. Em “Cabaret”, a Sally Bowles de Liza Minelli se equilibra entre o amor de um professor inglês e um aristocrata germânico na Berlim do início dos anos 1930, quando o nazismo começa a mostrar suas garras. Levado às telas em 1972, o drama musical dirigido pelo chicaguense Bob Fosse (1927-1987), que conferiu a Minelli e Fosse no ano seguinte os Oscars de Melhor Atriz e Melhor Diretor, respectivamente, aborda, sob uma perspectiva inovadora, a importância da arte em tempos de barbárie e obscurantismo. A cidade de Fosse, aliás, dá nome a um outro símbolo do teatro cantado e dançado, “Chicago”, apresentado aos palcos em 1975 e dirigido por John Kander. A peça da repórter policial Maurine Dallas Watkins (1896-1969), baseada nas histórias que ouviu de criminosas reais, se aproxima mais da “Burlesque” de Kopáčová por seu aspecto gauche, maldito. Betka, a professora complexada e perseguida de Eva Hacurová, é bem desenvolvida por sua intérprete, uma mulher bonita, a despeito dos quilos extras. À medida que deixa de dar tanta importância ao que seus alunos e os outros professores podem pensar dela, a personagem central de “Burlesque” verdadeiramente desabrocha, consegue processar em si mesma as tantas questões que recalcara por anos a fio e a vida adquire outro ritmo — e outro sabor.

O tipo vivido por Hacurová é muito bem trabalhado por Kopáčová. Betka remete às personagens de Liza Minelli, pela determinação, e às prisioneiras Roxie Hart e Velma Kelly, por uma certa tristeza que não disfarça totalmente — tudo reunido sob uma silhueta que lembra mais a de Queen Latifah, a carcereira Mama Morton da versão fílmica de “Chicago”, lançada em 2002, dirigida e coreografada por Rob Marshall. Em “Burlesque” entram em cena alguns dramas muito íntimos de uma mulher que, cansada de se submeter ad aeternum ao que esperam dela, vira a mesa e desliza no pole dance. Todos temos fantasias a rasgar.