Obra-prima com Tom Hanks, considerado um dos maiores filmes da história do cinema, volta ao catálogo da Netflix Divulgação / Paramount Pictures

Obra-prima com Tom Hanks, considerado um dos maiores filmes da história do cinema, volta ao catálogo da Netflix

Talvez não haja mais espaço no cinema para filmes como “Forrest Gump — O Contador de Histórias”, um sonho, um delírio, a materialização dos pensamentos mais verdadeiros e mais tresloucados de um homem que percebeu desde muito cedo que jamais poderia enquadrar-se no mundo — um lugar que, na verdade, não era capaz de despertar-lhe nenhum sentimento genuíno —, e se foi aprisionando cada vez mais no vastíssimo universo que com esmero criou para si mesmo, ajudado por quem sempre dispensou-lhe o mais fiel escárnio.

O filme é a junção ditosa do roteiro irrepreensível de Eric Roth e Winston Groom (1943-2020), da direção segura e inspirada de Robert Zemeckis, dos efeitos especiais da equipe supervisionada por Allen Hall e, claro, do elenco fabuloso, liderado pelo único ator que poderia exercer tal arriscada função. Mesmo dono de um dos rostos mais conhecidos do mundo já em 7 de dezembro de 1994, quando da estreia — além do carisma magnético e do talento que soube burilar como poucos —, Tom Hanks dá um passo muitas vezes maior que as pernas, com a licença do trocadilho, e se consagra de uma vez para sempre como um grandes heróis no panteão de Hollywood, com todo o mérito. O tamanho senso de humanidade de seu protagonista convence-nos de que qualquer um tem em si o seu lado Forrest, que vai tratando de sufocar, para o bem e para o mal, ao longo da vida.

Forrest participou de todos os grandes eventos da História entre os anos 1950 e 1980, e talvez fosse mesmo um parente colateral de Nathan Bedford Forrest (1821-1877), um dos comandantes das tropas do Sul escravocrata contra o Norte abolicionista durante a Guerra Civil Americana (1861-1865) e o primeiro Grande Mago da Ku Klux Klan, de 1867 a 1869. Malgrado passe um tanto despercebido, esse argumento é fundamental para que se entenda uma faceta das mais elucidativas do dédalo psicológico que forma o personagem de Hanks, o idiota útil dotado da inteligência muito peculiar que o leva a absorver uma quantidade sobre-humana de informações, sem, por evidente, digerir nada.

Nas sequências iniciais, nota-se logo a ojeriza e o pânico da enfermeira preta que aguarda pelo ônibus 9 no banco que divide com aquele lunático, sensação que a britânica Rebecca Williams muda primeiro em comiseração, em empatia, até chegar a um arrebatamento mudo, mas sincero, até que vem sua condução e ela desaparece. Nem Roth e Groom nem Zemeckis aprofundam-se no provável autismo de Forrest, menos pela patrulha do politicamente correto (ainda incipiente, mas já organizada) que pelo desconhecimento mesmo da questão, havendo por bem destacar a relação visivelmente doentia que mantém com a sacrificada mãe, que até se prostitui para que o filho, ainda que com um QI de 75, ingresse numa escola inclusiva — e Sally Field, num momento dramático que fica-lhe muito cômodo, engrandece não só o trabalho de Hanks como o filme por inteiro. 

O diretor vai propondo explicações para a forja social possível de Forrest, que na Guerra do Vietnã (1955-1975) torna-se amigo de Benjamin Buford Blue, o Bubba, um soldado preto cuja deficiência física não é motivo para que o exército o dispense, e acaba por morrer numa foz de rio no Sudeste Asiático. Da mesma forma que Field, Mykelti Williamson complementa o que o protagonista quer transmitir, e com os flashbacks, as muitas inserções de eventos históricos, como o atentado contra George Wallace (1919-1998), governador do Alabama, e os fragmentos de imagens que sugerem a participação daquele caipira antenado nas grandes reviravoltas do cenário cultural do século 20, a exemplo de Elvis Presley (1935-1977) e John Lennon (1940-1980), começa-se a pensar que Forrest pode ser a consciência crítica de um tempo atrasado demais para ele. Forrest, ainda que tivesse nascido mais limitado do era, correria até chegar ao seu destino nessa obra-prima que, outra vez, o cinema não há de repetir nunca.


Filme: Forrest Gump — O Contador de Histórias
Direção: Robert Zemeckis
Ano: 1994
Gêneros: Drama/Comédia/Fantasia 
Nota: 10