O maior romance dos últimos dois séculos está na Netflix Divulgação / Focus Features

O maior romance dos últimos dois séculos está na Netflix

A profundidade dos anseios humanos, especialmente no que se refere ao amor, encontra uma representação magistral na obra de Jane Austen e em suas inigualáveis personagens. Austen, uma das autoras que melhor desvelou os aspectos sombrios da sociedade de sua época, especialmente para as mulheres, só teve seu talento reconhecido muito tempo após sua partida, em 18 de julho de 1817, aos 42 anos, vítima do mal de Addison, uma enfermidade autoimune sobre a qual pouco se sabia há duzentos anos.

“Orgulho e Preconceito”, publicado originalmente em 1813, serve como uma válvula de escape através da qual almas inquietas como a de Austen liberam seus anseios por uma sociedade verdadeiramente justa, na qual todas as mulheres pudessem florescer como a própria Elizabeth Bennet. A anti-heroína de um dos romances mais emblemáticos da literatura britânica do século 18 sonha, mas jamais se permite abrir mão de sua liberdade, de seu equilíbrio mental e, muito menos, de sua honra e autenticidade.

Joe Wright absorve essa urgência presente na obra de Austen, que deliberadamente alimentava uma vertigem entre criadora e criaturas, nunca artificial porque Elizabeth e todas as suas outras protagonistas femininas nasciam dos anseios e da impossibilidade de amar da autora. O cântico dos pássaros ao amanhecer em Netherfield Hall continua a ressoar com beleza, mesmo em tempos que incitam precaução. Enquanto Lizzie caminha com um livro em mãos em direção à imensa propriedade rural onde mora com sua família, a serenidade transmitida por Keira Knightley na pele da protagonista sugere que aquele universo é uma realidade paralela, onde os personagens estão fadados a permanecer para sempre.

Ao longo de 126 minutos, percebemos que a agitação das jovens donzelas, cheias de vida e esperanças de casamento, gradualmente cede lugar a retratos desbotados, amarelados pelo passar dos anos, uma sensação reforçada pela excelente fotografia de Roman Osin. À medida que as demais irmãs Bennet são apresentadas, uma figura masculina começa a provocar suspiros e despertar os instintos mais primitivos das jovens – quatro delas, já que a segunda das irmãs Bennet acredita que amor e casamento são conceitos inconciliáveis ou prefere a solteirice. Knightley mantém-se firme em meio às oscilações emocionais de Lizzie, enquanto Wright adiciona mais uma camada à brilhante interpretação de sua protagonista.

O baile oferecido por Charles Bingley, um rico membro da aristocracia inglesa que acaba de se instalar nas redondezas de Netherfield Hall, é a oportunidade aguardada por Mary, Kitty, Lydia e Jane para se distanciarem da pobreza e, quem sabe, experimentarem o amor. Nesse baile, onde circulam tipos como George Wickham, um tenente que à primeira vista parece acima de qualquer suspeita, a presença de Bingley e sua irmã Caroline, interpretada pela perturbadora Kelly Reilly, se destacam. Junto ao herói encarnado por Simon Woods, o personagem de Rupert Friend confere uma profundidade dramática ao roteiro de Deborah Moggach, preparando o terreno para o encontro que moldará o destino do filme.

Quando Darcy, um homem de espírito tão aventureiro quanto o de Lizzie, cruza o caminho dela no salão de baile dos Bingley, Austen nos fala sobre a fé inabalável no amor, uma mensagem que Wright aproveita ao máximo. Michael Macfadyen personifica Darcy como o contraponto viril à Elizabeth de Knightley, e a partir desse momento, a magia de “Orgulho e Preconceito”, que está na Netflix, se consolida. O diretor conduz magistralmente o anti-romance entre os dois, transformando-o em um dos mais belos romances da literatura universal.

Mesmo nos momentos de maior tensão, como o incidente com Wickham (que acaba se casando com Lydia, interpretada por Jena Malone, após fugir com ela), percebemos que Darcy e Lizzie foram feitos um para o outro. A maestria narrativa de Austen está em observar como a suposta antipatia entre eles esconde, na verdade, uma paixão que já não pode ser negada – um elemento retórico que Wright compreende e domina como poucos. Por sua capacidade de pensar nos outros antes de ceder às suas próprias angústias quase insuperáveis, Darcy e Lizzie alcançam o amor como prêmio, a maior conquista da vida. Eles ganham o mundo sem jamais comprometerem suas almas.


Filme: Orgulho e Preconceito
Direção: Joe Wright
Ano: 2005
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 9/10