A despedida de Gary Winick do cinema: a mais bela história de amor do século 21 está na Netflix John P. Johnson / Summit Entertainment

A despedida de Gary Winick do cinema: a mais bela história de amor do século 21 está na Netflix

“Cartas para Julieta” é romântico do começo ao final, com todos os exageros que permitem o amor, a paixão e a loucura desta, que quase sempre mata o primeiro — mas não aqui —, além da harmonia de um canto orfeônico entoado a pulmões cheios por anjos dignos de impossíveis catedrais. Gary Winick apresenta seu trabalho, uma profissão de fé na mais humana das emoções, dispondo de uma cadeia de imagens em que serafins; figuras pictóricas de quadros renascentistas, talvez de Caravaggio (1571-1610); personagens do cinema mudo e adoráveis peixinhos coloridos seguem a recomendação de Cole Porter (1891-1964) em “Let’s Do It (Let’s Fall in Love)” e se amam, tudo bem de acordo com o que espera a audiência.

O roteiro de José Rivera e Tim Sullivan é tão deliciosamente previsível que, mesmo nas horas em que o filme se inclina para uma reviravolta que botaria a perder toda aquela mansidão de comédia romântica, cada elemento, um por um, torna ao seu lugar. Exatamente como a vida deveria ser.

Sophie, a mocinha de Amanda Seyfried, incorpora de vez o espírito cor-de-rosa do enredo e zanza sem muita pressa pela Times Square, onde espera achar uma pista que comprove que uma das cenas mais poéticas do século 20 não foi armação — na verdade, o pano de fundo do evento é um pouco pior. Em 14 de agosto de 1945, o fotógrafo polonês Alfred Eisenstaedt (1898-1995), radicado nos Estados Unidos, trabalhava para a revista Life quando flagrou um homem fardado de marinheiro surpreendendo uma mulher de uniforme, enfermeira, talvez, com um beijo na boca.

O luso-americano George Mendonsa (1923-2019) acabava de saber que o Japão, afinal, rendera-se aos Estados Unidos, efeméride que marcava o ansiado fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Dominado pela emoção (e por umas doses a mais de uísque), Mendonsa, então com 22 anos, viu a austríaca-americana Greta Zimmer Friedman (1924-2016), auxiliar num consultório odontológico, e não teve dúvida: tomou a moça nos braços e o resto é história.

Minudências nada afetuosas do caso, vindas à luz passadas décadas, apontaram para conclusões nada empolgantes. Para começar, os dois não se conheciam, e embora a ocasião fosse mesmo feliz a ponto de inspirar uma atitude daquelas por parte do marujo impetuoso, um escândalo relativizado à época, hoje decerto Mendonsa pararia atrás das grades — não obstante o simbolismo da imagem, batizada com um óbvio e entufado “The Kiss” (e ainda mais forte se se levar em conta que eram ambos imigrantes, além do próprio Eisenstaedt), batesse o fato por si só.

Por natural, Sophie, aspirante a escritora que se defende com textos entre jornalísticos e romanceados como esses, não o emplaca na “The New Yorker”, e, num primeiro instante, não se frustra. O noivado com Victor, o chef interpretado por um Gael García Bernal que aparece somente em lances muito pontuais, desenrola-se sem grandes surpresas — o que, conforme se vai assistir, não é propriamente auspicioso —, e não há nada que não se possa restaurar em Verona, ela acredita.

Rivera e Sullivan situam mais de 90% do filme na cidade escolhida por Shakespeare para dar vida a seu par romântico mais lembrado, mais lírico e mais desditoso, que não deixa de remontar, guardadas as devidas proporções, a Mendonsa e Friedman. Na terra encantada de Romeu e Julieta, os personagens centrais da peça homônima encenada pela primeira vez em 1597, a heroína de Winick encontra uma carta que resistiu por meio século (não estraguemos a mística da coisa toda e permitamo-nos uma ampla licença poética), na qual uma moça chamada Claire Wyman tenta, sem êxito, unir-se ao Romeu que a sorte, pensava, lhe havia destinado.

Para tanto, largara a missiva à padroeira dos amores impossíveis numa fenda da casa onde Julieta teria morado, a mesma casa em cujo balcão recebia, à distância, os clamores apaixonados de seu eterno pretendente.

As entrelinhas respondem por muito do fascínio de “Cartas para Julieta”, e não foi por acaso que coubera a Vanessa Redgrave interpretar Claire. Em 1967, Redgrave conheceu Franco Nero no set de “Camelot”. Então casada com Tony Richardson (1928-1991), a Guinevere do épico de Joshua Logan (1908-1988), apaixonou-se por Nero, na pele de Lancelot, e, apesar do choque inicial — de Richardson e, principalmente, do público — essa é a jornada de um amor sereno.

Por óbvio, também coube a Nero, até hoje um galã de respeito, viver o par de Redgrave aqui. Reservado para o encerramento, quando o diretor inclui um dispensável suspense sem susto acerca da verdadeira identidade do homem que povoou as fantasias juvenis de Claire, seu Lorenzo Bartolini é de fato o que se espera dele. O Charlie de Christopher Egan, como o personagem de Nero, entra, por evidente, para definir o casal mais novo, uma vez que Sophie nunca conseguira viver em plenitude sua relação com Victor.

Que se observe, então, esses dois requisitos: 1º) “Cartas para Julieta” deve ser apreciado como um filme romântico, sem quase nada de cerebral que o fundamente; e 2º) aconselha-se saber um pouco dos bastidores do cinema antes de se começar a travessia. Se se quiser poderiam entrar mais dois, quanto à sensação, enganosa, de que esta é uma trama para adultos, e sobre a necessidade de se estar em estado ou de arrebatamento ou de poesia para fruí-lo em todas as suas possibilidades. Mas é muito bom pensar que o amor vem mesmo quando no coração já não cabe mais nenhum devaneio.


Filme: Cartas para Julieta 
Direção: Gary Winick
Ano: 2010
Gêneros: Romance/Drama/Comédia
Nota: 9/10