O filme na Netflix que todo mundo deveria assistir para acalmar o espírito e perceber que o amor promove milagres Divulgação / Mongrel Media

O filme na Netflix que todo mundo deveria assistir para acalmar o espírito e perceber que o amor promove milagres

Artistas são, quase sempre, a personificação das vivências que têm ao longo da vida, e quanto mais sofridas elas são, mais sólido, maduro e revolucionário vai se tornando sua obra. Maud Kathleen Lewis (1903-1970) passou por poucas e boas até ver reconhecidas como verdadeira manifestação artística, já depois dos sessenta anos, suas pinturas de campos, montanhas, flores e pássaros, formas pueris com as quais propunha o descanso do olhar, tentativa desesperada de conter seus demônios e preservar a criança irrequieta que nunca deixara de ser.

“Maudie: Sua Vida e Sua Arte”, a cinebiografia da irlandesa Aisling Walsh, é um registro breve de mais de seis décadas do sofrimento com o qual foi se habituando a conviver e que soube como poucos transformar em beleza. Sherry White, a roteirista, pinça lances pictóricos da vida da personagem-título, definidos por imagens cheias de cor e movimento, e os tempera com passagens assumidamente sombrias, quase tétricas, marcadas pelo avanço de uma doença crônica e progressiva e um conúbio insosso, consumado em circunstâncias degradantes. Imposições do destino que só serviram para dar-lhe a certeza de que não poderia se resignar.

Maudie abre o filme exercendo a atividade de que mais gosta, ainda que não deixe escapar nítidos sinais de incômodo e dor. Ela mistura as cores e principia a esboçar a silhueta de uma flor na parede atrás dela, e então o público é autorizado a entrar em seu universo e especular sobre as razões de seu martírio. Pouco depois, ela fuma na varanda de uma casa limpa e bem-iluminada, e em ambas as cenas parece uma menina presa num corpo adulto, dicotomia que o cigarro só faz realçar.

Sally Hawkins nunca perde a oportunidade de chamar a atenção do público para a fragilidade dessa mulher cada vez mais encantadora, como se obrigada a pagar um preço alto demais por não ser como os outros. Walsh vai e vem no tempo ao sabor da narrativa, apresentando Maudie ora mais jovem, ora mais vivida, mas sempre frágil, dependente. Na casa de Ida, a tia com quem passa uns tempos imaginando que logo voltará para o lar em que cresceu, é pouco mais que um bibelô, removido da estante de quando em quando para ser lustrado. Gabrielle Rose encarna essa limitação a ser vencida por Maudie, assim como o irmão, Charles, de Zachary Bennett, bem-intencionado ao oferecer à tia um salário para que Maudie tenha um teto, um prato de comida e algum afeto, mas ele mesmo incapaz de sequer definir o que sente por aquela mulher agora tão estranha a seus sentimentos. 

Maudie não pode voltar para a casa de sua infância porque Charles vendera o imóvel, e isso parece acender qualquer coisa nela. A transição de uma criança adiada para a mulher que tenta domar sua sorte coincide com a evolução da artrite severa que desenvolvera depois de dias de padecendo de uma febre reumática quando menina, o que, por óbvio, influenciou a pintora que de fato viria a se tornar. Ao arranjo com Everett Lewis, o peixeiro bronco com quem dividiria a vida em algum ponto do começo dos anos 1940, nunca se pode dar o nome de casamento, mas se completavam. A diretora empenha boa parte de “Maudie” a fim de mostrar o relacionamento sui generis, de altos e baixos da protagonista e Everett, com Ethan Hawke comoventemente dedicado, hábil em oscilar do sujeito rude para o companheiro adorável, que descobre na iminência da conclusão o porquê daquela mulher estranha e fascinante ter cruzado o seu caminho. E feito história nas artes plásticas do Canadá.


Filme: Maudie: Sua Vida e Sua Arte
Direção: Aisling Walsh
Ano: 2016
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 8/10