Com referências do cinema noir e Dostoiévski, thriller que acaba de chegar à Netflix vai te deixar preso até o último segundo Divulgação / QC Media

Com referências do cinema noir e Dostoiévski, thriller que acaba de chegar à Netflix vai te deixar preso até o último segundo

O trabalho na polícia tem idiossincrasias que distinguem-no de qualquer outra atividade laboral, seja lá o ponto de vista que se queira admitir. Para princípio de conversa, policiais, na teoria, não tiram folga nunca, e o senso de se fazer justiça sem as tantas firulas dos trâmites processuais — que nem sempre chegam onde deveriam chegar — tarda muito a deixar de fazer parte da rotina de alguém que dedicou seus melhores anos ao trabalho de combater o perigo imanente das ruas, desafiado por um instinto de sobrevivência que se amplia para a sociedade que aprendeu a escudar.

Grosso modo, as forças de segurança lidam com os mesmos gargalos no mundo todo, e quanto a Taiwan, “Abandonadas” dá uma contribuição preciosa para que se entenda um pouco melhor a angústia de quem se imbui verdadeiramente da tarefa de tornar o meio que também habita um lugar menos insalubre, tentando separar o joio do trigo na selva das relações humanas.

Prestes a estrear no Festival Internacional de Cinema de Roterdã, na Holanda, de 25 de janeiro a 4 de fevereiro de 2024, o filme de Tseng Ying-ting alude aos bons noirs feitos por Hollywood ao longo das décadas de 1940 e 1950, a exemplo de “Até a Vista, Querida” (1944), dirigido por Edward Dmytryk (1908-1999), e “No Silêncio da Noite” (1950), de Nicholas Ray (1911-1979). Mas o roteiro do diretor, co-assinado por Pin Chun-lin e Yang Yi-chien, está sempre voltado para sua personagem-central, uma mulher assolada por lembranças e por uma vida tomada pela melancolia.

Na véspera de Ano Novo, fogos de artifício espocam no céu de Taipei. Dentro de um carro popular, a vice-capitã Wu Jie está determinada a atentar contra a própria vida, mas erra o tiro quandouma adolescente cai do azul e esmurra-lhe o vidro, rogando por socorro. Essa abertura especialmente macabra, com Janine Chun-Ning Chang concentrada na tarefa de imprimir tensão à história, garante o interesse do público pelos 104 minutos restantes, e o suspense dá a tônica no momento em que a investigadora desce e vai até a margem do rio que corre por ali e avista um cadáver já em estado de decomposição.

Essa passagem, uma clara referência ao Dostoiévski de “O Sonho de um Homem Ridículo” (1877), orienta muito do que se assiste até o desfecho, os embates internos de uma mulher em guerra consigo mesma instada a frear um assassino em série inegavelmente talentoso, sem pejo de trucidar suas vítimas com requintes de crueldade. Paulatinamente, compõe a equação a variável sociológica, e Wu Jie descobre que Fan Chang-fu, o verdugo interpretado por Ju An-shun, têm uma preferência: imigrantes ilegais cujos salários de fome ninguém leva em consideração.

Tseng Ying-ting refina a sensação de isolamento com soluções fáceis a exemplo da luz sempre alguns tons abaixo do habitual, observação sagaz da fotografia de Stanley Liu; no último ato, Lin You-sheng, um homem tão misterioso quanto atormentado, divide-se entre a pretensão de ser o novo aliado da heroína, movido pelo desejo de justiça pela namorada, Waree, e a comodidade de seguir desfrutando das benesses dos empresários que levantam impérios às custas de estrangeiros desvalidos, com Ethan Juan incorporando o perturbador dilema moral que o aproxima de Wu Jie.


Filme: Abandonadas
Direção: Tseng Ying-ting
Ano: 2022
Gêneros: Crime/Suspense
Nota: 8/10