Filme brilhante sobre amor, perda e o poder restaurador da amizade é a maior aposta da Netflix para janeiro Divulgação / Netflix

Filme brilhante sobre amor, perda e o poder restaurador da amizade é a maior aposta da Netflix para janeiro

O sucesso pode ser um anestésico poderoso. Depois de se ganhar uma fieira de prêmios, alguém pode tornar-se tão perigosamente engessado que correm anos até que se convença da necessidade de procurar novos caminhos, desafiar-se, cultivar a vontade de saber se seu talento se aplica a algum outro formato, dúvida capaz de botar por terra o que já se havia consolidado.

Felizmente, Dan Levy é inquieto e ambicioso demais para se resignar com o que é seu, e com “Do Outro Lado da Dor”, dá um recado inequívoco a quem o queria apenas na televisão. Talvez leve ainda algum tempo até que o astro de “Schitt’s Creek” (2015-2020) torne o diretor que vê em seus sonhos, mas sua estreia à frente de um longa-metragem guarda bons auspícios.

Levy foi diligentemente astuto ao escolher o argumento do filme que também protagoniza, trabalhado por ele num roteiro que tenta deixar de lado a linguagem fácil das produções televisivas e se aprofunda em questões como o que existe de real e de ilusório nos relacionamentos homossexuais ditos monogâmicos; multiculturalismo; as novas configurações familiares; a supremacia um tanto envergonhada da amizade em meio a desarranjos conjugais, até que a história ganha vida própria e faz também as suas escolhas.

Uma confraternização de Natal reúne amigos na casa de Marc e seu marido Oliver, um famoso escritor que experimenta uma fama repentina e arrebatadora depois que seus livros de apelo juvenil viraram franquias intermináveis. Paris está mais silenciosa que de costume, mas a festa avança pela noite, com os convidados sem nenhuma vontade de refrear sua alegria para se despedir do anfitrião, que tem de correr para uma sessão de autógrafos no Louvre. Oliver, uma participação afetiva de Luke Evans, entra no táxi e minutos depois sirenes e luzes azuis e vermelhas tomam conta da rua — claro que é muito azar, mas ninguém se atreveria a dizer que é um absurdo. Marc corre à janela e sai desesperado, apenas a fim de ver com os próprios olhos a cena que vai arrastar sua vida para uma espiral de depressão e apatia, observada com um respeito exagerado pelos amigos mais próximos. 

A amargura em “Do Outro Lado da Dor” começa mesmo um ano depois, no momento em que Marc decide abrir o cartão do Natal passado,somentepara ler a confissão de um adultério de Oliver, prenúncio quase certo de uma separação. Levy consegue fazer com firmeza e sentimento a transição do viúvo inconformado para o marido vítima de uma infidelidade especialmente cruel, uma vez que Marc cuidava dos aspectos práticos da vida em comum dos dois enquanto Oliver só tinha de se preocupar em atrair os holofotes.

A tal noite de autógrafos no Louvre também fora uma mentira covarde, mas o diretor, acertadamente, opta por evitar abordagens deterministas sobre destino e vingança, preferindo dar espaço para que Sophie e Thomas, os amigos de Marc vividos por Ruth Negga e Himesh Patel, apareçam na história. Uma viagem algo misteriosa os aproxima ainda mais, e esse é o gancho de que o diretor-protagonista se socorre na intenção de salvar Marc, aprendendo do jeito mais inusitado que o amor não é exatamente o que queremos que ele seja. A memorável cena com Celia Imrie na pele de Imelda, uma contadora sentimental na medida, resume bem a essência do filme.


Filme: Do Outro Lado da Dor
Direção: Dan Levy
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Comédia/Romance
Nota: 8/10