Filme de Kleber Mendonça Filho, que representará o Brasil no Oscar 2024, acaba de estrear na Netflix Divulgação / Ancine

Filme de Kleber Mendonça Filho, que representará o Brasil no Oscar 2024, acaba de estrear na Netflix

Conheço o Recife de outros Carnavais, mas devo confessar que estou em falta com a cidade, e não sei se a conheço mais. Meu último contato com a nossa Veneza deu-se em 2000, mesmo ano da demolição do hotel Boa Viagem, talvez a constatação de uma inevitável decadência da mais cosmopolita das metrópoles do Nordeste do Brasil, o último prego na tampa do caixão, processo que se estendia há, pelo menos, duas décadas, momento da evacuação dos grandes centros comerciais, muitos deles voltados às diversões públicas, do feixe nervoso do Recife, lugar onde se estabeleciam conexões para muito além do vil metal e da roda viva da economia popular, bem ou mal o que segura o rojão de um país ainda paupérrimo, subdesenvolvido, de acordo com a terminologia de antanho, sempre à espera de um milagre, ou do próprio messias.

É esse o gancho aproveitado por Kleber Mendonça Filho em “Retratos Fantasmas”, crônica não do Recife, Kleber que me desculpe, mas do Brasil, esse paraíso perdido, esse país do futuro imerso no passado que insiste não passar, ainda carente de identidade — e se carente de identidade, carente de tudo o mais. O fabuloso trabalho do diretor conecta o Brasil de 2020, sem norte na bruma densa e fétida de desinformação, ignorância, obscurantismo, má-fé e ladroeira que deu por estas esquinas quando da eclosão da pandemia de covid-19, ao suplício de sua terra ao longo de sessenta anos, experimentando a conta-gotas o amaríssimo sabor do abandono, representado, como não poderia deixar de ser, pela debacle da política cultural do município. O Recife se dá por satisfeito em contemplar com acerba nostalgia seus tempos de glória com uma autopiedade muda. Kleber não.

Para atingir o todo, o diretor começa do particular, do íntimo, do desconforto de revelações que não dizem respeito a ele exclusivamente. O apartamento na rua José Moreira Leal, no Setúbal, Zona Sul da capital pernambucana, vira palco para um retrospecto nada menos que instigante em sua poesia. Em reconstituições que se vão amalgamando a poderosas imagens de arquivo, o texto sofisticado de Kleber remonta a uma cidade soterrada, primeiro por memórias, tristes como soem se apresentar todas as memórias, e depois sem figura de linguagem.

A figura da jornalista e socióloga Joselice Jucá, mãe de Kleber, desponta como uma iluminação, tentando explicar a uma repórter, em entrelinhas quiçá demasiado sutis, a importância do registro, neste caso, um estudo acerca dos então 35 anos da Chesf, a Companhia Hidroelétrica do São Francisco, em 1982. Três anos antes, em 1979, Joselice adquirira mediante um programa estatal de financiamento de imóveis, o apartamento de fundos, na área menos nobre de Boa Viagem, onde, como um maldisfarçado ato de protesto, quebrou as paredes da dependência de empregada a fim de transformar o cômodo num escritório. O escritório virou sala de vídeo, e como por encanto, sem que ninguém se aperceba do truque, Kleber chega ao Cinema São Luiz, o velho templo da sétima arte na rua da Aurora.

A pandemia foi a desculpa que faltava para que o São Luiz foi, definitivamente, largado as traças, outra vez sem trocadilho. O complexo, um monumento à resistência cultural do Recife — Ugo Sorrentino, fundador da Art Films, mantenedora do espaço, exibia todos os filmes de Warner, Metro, Fox e companhia, mas em seus saguões, cinéfilos inveterados discutiam muito mais que os enquadramentos de Scorsese ou as tiradas de Buster Keaton (1895-1966) —, foi alvo, no começo da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), da cobiça de Hitler, que o queria como divulgador das ações da SS por meio da Universum Film AG, a UFA, cooptada por Goebbels, o que, felizmente, não chegou a ocorrer. Em vez disso, os cinemas de rua do Recife deram lugar a suntuosas igrejas de confissão neopentecostal e farmácias, muitas farmácias. Todos ansiando suas curas. 

Observo o Recife ao longe, reflexivo quanto ao que pude apreender da cidade durante férias de verão na casa de parentes no suburbaníssimo Peixinhos, e, intrometido, também sinto suas dores. Mas o Recife é longe, Peixinhos é pouco menos que um retrato na parede, a vida é dura e o Brasil, um caso perdido, um feixe de promessas que nunca hão de se concretizar, também por nossa causa. Principalmente por nossa causa.


Filme: Retratos Fantasmas
Direção: Kleber Mendonça Filho
Ano: 2023
Gêneros: Documentário
Nota: 10