Filme que levou 4 Oscars e mais de 150 milhões de pessoas aos cinemas está na Netflix Alex Bailey / 20th Century Fox

Filme que levou 4 Oscars e mais de 150 milhões de pessoas aos cinemas está na Netflix

O tanzaniano Farrokh Bulsara (1946-1991) talvez tenha sido a celebridade da música internacional que menos despertou a empatia de seu público em questões muito íntimas de sua personalidade. Janis Joplin (1943-1970), Marvin Gaye (1939-1984), Amy Winehouse (1983-2011) e outros tantos encabeçam a triste relação de artistas cujo talento, carisma e fortuna não foram suficientes para poupá-los de pessoais que, é forçoso dizer, poderiam ter sido evitadas — e o pior, se estendem ao longo das décadas, nas vidas dos novos semideuses de olimpos de barro e da gente comum que toma um trem e dois ônibus para chegar ao trabalho que garante-lhes pouco mais que a sobrevivência.

Num tempo feliz em que o politicamente correto não tinha lugar, Bulsara, sob a tresloucada identidade de Freddie Mercury, levava centenas de milhares de fãs a seus shows, enquanto tentava manter a salvo da especulação da imprensa o segredo de polichinelo de sua homossexualidade. O roteiro de Anthony McCarten escolhe justamente um desses concertos mágicos, quando de sua projeção com o Queen, banda de que o cantor se desligou em 1986, para relativizar o drama do astro. Aparecendo duas vezes ao longo de “Bohemian Rhapsody”, de Bryan Singer e Dexter Fletcher, no início e no desfecho, as sequências da multidão composta de 72 mil almas cantando “Love Of My Life” (1975) e “We Are The Champions” (1977), são de fato tocantes e levam os mais sensíveis as lágrimas. Contudo, o maestro dessa orquestra ia muito além dos palcos.

De quando em quando, os chiliques do maior band leader da história da indústria do entretenimento incomodavam os demais membros do Queen. O guitarrista Brian May, vivido por Gwilym Lee; o baterista Roger Taylor, interpretado por Ben Hardy, e o baixista John Deacon, de Joseph Mazzello, tinham Mercury como um irmão e por saberem-no um exilado em sua própria vida, relevavam grandes parte de suas, digamos, excentricidades.

O trio sabia como poucos das escapadelas de Mercury a horas mortas na tentativa de livrar-se, ainda que pelo tempo de um arroubo sexual, da vida que escolhera ter, o que, não raro, implicava mais frustração, vergonha, raiva, desespero. Nesse particular, vêm a lume oportunas discussões acerca do quão dependente do certificado de straight friendly o vocalista do Queen foi se tornando ao longo da carreira, uma das mais bem-sucedidas de que se tem registro, adaptado ao papel de coadjuvante quando sempre fora a razão de tudo aquilo existir, caricatura risível e melancólica de um homem preso numa gaiola de ouro.

A gloriosa performance do Queen no Live Aid em 13 de julho de 1985, evento que contou com a participação de artistas de renome a fim de arrecadar fundos para erradicar a fome na Etiópia, foi uma espécie de apoteose, na qual, ainda sem o saber, despedia-se da era de luzes e esplendor com que a vida cigana da música o regalava. Pouco mais de dois anos depois, Mercury começaria a travar a maior batalha de sua vida, ao ser diagnosticado portador de HIV/aids.

O Live Aid foi transmitido para mais de cem países, arregimentou cerca de dois bilhões de espectadores e juntou donativos na ordem dos 150 milhões de libras, consagrando aquele tipo esbelto e algo andrógino, mesmo por trás de um bigode espesso, como a grande estrela que continuaria a ser, agora também comprometida com questões sociais aos olhos implacáveis dos jornalistas.

McCarten, Singer e Fletcher — o fato de o filme dispor de dois diretores, o oficial, Singer, demitido por “comportamento errático” (leia-se absenteísmo, ou vadiagem mesmo), e Fletcher, que segurou o rojão depois da hecatombe — dão a entender que o reconhecimento do líder do Queen como um artista singular e um cidadão do mundo, preocupado com temas que ultrapassavam fronteiras, teria de alguma forma amenizado o suplício de Mercury, o que, levando-se o prisma para a direção contrária, mas sempre em consonância com a lógica, permite que cretinos infiram que tenha sido ele o culpado por seu flagelo. Estranhamente, Fletcher foi o escolhido para comandar “Rocketman” (2019), musical livremente inspirado (e bota “livremente” nisso!) na vida do britânico Elton John, inclusive quando ele era apenas Reginald Kenneth Dwight.

A figura de Mary Austin contribui para o que o espectador se iluda quanto à possibilidade de um romance em “Bohemian Rhapsody”. Lucy Boynton personifica essa fixação de Mercury por enamorar-se sinceramente de uma mulher, e por mais que o enredo queira nos fazer acreditar que os dois consumaram mesmo esse amor, resta sempre o travo do interesse para além da conexão amorosa, de parte a parte.

Enquanto isso, o protagonista continua a se debater com seus fantasmas interiores, e louve-se a força sensível de Rami Malek, ganhador do Oscar de Melhor Ator pelo papel — uma cena em que o cantor mostra-se desabridamente inclinado a aceitar o flerte silencioso de um motorista de caminhão no banheiro de um posto de combustível trata de botar uma pedra sobre qualquer esforço de se pensar que Austin e o biografado fossem mesmo ser felizes para sempre. Incensando a lembrança de Mercury e cedendo a tentações hagiográficas, a tela se apaga num fade out e nunca se sabe ao certo o que pode ter acontecido entre aqueles dois homens, criaturas de universos paralelos ligadas apenas pelo desejo. Isso era ser um homem gay nos Estados Unidos ou em qualquer outra parte do globo ao longo dos falsamente libertários anos 1970, quando promessas de amor verdadeiro, sem máscaras, intenso, como o que Mercury poderia ter vivido com Jim, o garçom que serviu no baile à fantasia dado pelo cantor no início do filme, participação convincente de Aaron McCusker, se esvaem num sopro, para nunca mais.

Ficam para a eternidade também a intenção de Fletcher de discutir a sexualidade como motor de transformação social — ao menos no que se refere ao tempo em que Freddie Mercury viveu — e seu pouco traquejo nos ambientes em que não era o centro das atenções, obstáculo que a vida toda quis vencer. Li certa feita que Mercury, depois do carrossel de fogo da carreira artística, de que nunca se pode sair sem chamuscaduras, toparia deixar tudo para ser um bom dono de casa para o marido que o quisesse. Infelizmente, o líder do Queen não teve a sorte do homem do foguete, que continua de pé.


Filme: Bohemian Rhapsody
Direção: Bryan Singer e Dexter Fletcher
Ano: 2018
Gêneros: Musical/Drama
Nota: 8/10