Joia do cinema argentino, na Netflix, é diferente de tudo que você já viu Divulgação / Matanza Cine

Joia do cinema argentino, na Netflix, é diferente de tudo que você já viu

Tragédias sempre rondam a jornada do homem, que, em medida bem mais austera, dispõe também de boas chances de redenção. A consciência é o pior cárcere que alguém pode ter, e em sendo assim, Santiago está no calabouço mais fundo. “Nascido e Criado” é outro dos ótimos perfis da inclassificável alma humana elaborados por Pablo Trapero, um genuíno mestre nessa arte. Dores reais viram traumas que pairam como sombras monstruosas na vida desse homem angustiado, remoendo a incerteza de ter cometido o pior dos erros, ainda que de quando em quando possa valer-se do consolo de sentir-se absolvido pelo tempo e pelas lembranças tirânicas, que muitas vezes regressam à superfície sob a forma dos rostos afáveis de quem já amamos. O roteiro do diretor e Mario Rulloni opera exatamente nesse intervalo, no que ainda pode ser ajustado na vida do protagonista e o que resta irremediavelmente esvaziado, murcho, sem qualquer coisa que o faça lembrar de que também é um homem feito os outros. Em cada um dos filmes de Trapero há heróis ansiando por reabilitação, sequiosos por novos caminhos e dispostos a mutilar-se só por um desfrute rápido da felicidade.

Fotografias em preto e branco se sucedem numa parede clara, a maior parte de uma mulher e uma garota, até que se consegue ver uma de Santiago, já no final da sequência. A vida de Santi é um daqueles contos de fadas que por si sós parecem impossíveis ao ser humano, por mais esforços que possamos fazer. O diretor empenhaboa parte dos sóbrios cem minutos para descrever o cotidiano da família que ancora o enredo por todo o primeiro ato, quando se dá a reviravolta que se esperava, malgrado todos anseiem por uma solução deus ex machina de Trapero, o que até acontece, mas não na proporção e ainda menos na intensidade que decerto transformariam a história num melodrama intragável — volto ao ponto já, já. Santi e a mulher, Milli, interpretado por Martina Gusmán, surgem fazendo partilhando sua rotina em recortes domésticos banais, como dormindo na mesma cama com Josefina, a filha, de Victoria Vescio. Quando acordam, estão atrasados para a viagem à Patagônia que o casal planejava há algum tempo, deixando com os empregados o ateliê de restauração de objetos antigos que mantêm em sociedade. A ambivalência é um instrumento que Trapero maneja com delicadeza rara, o que se comprova no instante em que o evento funesto que divide a narrativa toma corpo. Ao mesmo tempo em que se sabe que aquela estupidez brutal poderia ter sido evitada, se tem certeza de que sem ela Santi nunca se descobriria por completo.

A transformação pela dor é a grande metáfora por trás de um dos filmes mais violentos e poéticos de Trapero, violento inclusive (ou sobretudo) quando o miserável anti-herói de Guillermo Pfening encontra-se a sós com seus demônios. Uma nova virada na iminência da conclusão poderia ser o final feliz brega que muitos poderiam querer, mas até aí o diretor trata de cortar o barato dos inocentes do Leblon, do Madero, dos Jardins e adjacências. Essa maturidade continua a faltar em 90% do cinema do Brasil.


Filme: Nascido e Criado
Direção: Pablo Trapero
Ano: 2006
Gêneros: Drama
Nota: 9/10